segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Malditos - Cap. XVII

Retalhos


Elias: Troque o alvo!... Distancie mais... Mais... Ok.

BANG!

Treinador: Na mosca! Hoje você está impossível.
Elias: Distancie mais sete metros. Vou experimentar o rifle.


Enquanto checava a arma, a mente de Elias mergulhou no passado. Ele tem treze anos, seu pai o ensina, pela primeira vez, a manusear o Rossi, a firmá-lo corretamente no ombro para amenizar o coice do tiro. “Nós somos uma família de caçadores, meu filho!”. O hábito de caçar é uma herança duradoura entre seus familiares, talvez tenham sido os maiores exterminadores da onça parda na mata Atlântica.

Agora, caçar é uma atividade criminosa. Por isso, criaram o Clube do tiro, para simular a velha sensação. Elias é um exímio atirador. Quando se sente angustiado, vem aqui praticar. O tiro exige concentração, clareia a mente. E tudo que precisa é um pouco de silêncio, ainda mais depois das sementes que Ana plantara em sua consciência.

BANG!

No deserto, o Astrólogo desenha sobre a areia os símbolos do infinito e do acaso. Longe dele, o Maestro se aproxima do abismo, para melhor ouvir os músicos executando sua sinfonia. Que a cerimônia comece!

BANG!

Em sua casa, sentado no sofá da sala, Orlando lê distraidamente os jornais. Sua esposa está sentada em outro sofá, com uma revista de decoração nas mãos, mas apenas para disfarçar e espiar o marido. O que ele está pensando? O que conversa tão sigilosamente com seu pai?

Alheia aos dois, a menina brinca com seu carrinho das Super-espiãs, e ela é a mais audaciosa, a mais corajosa, seu carro salta sobre a televisão, o sofá, o tapete...

Eva: Assim você cai, filha.

Orlando olhou espantado para esposa, o gesto de cuidado com a criança, o rápido abraço de proteção. Ele amassou o jornal, pegou a mulher pelo braço e a levou para o quarto, fechou a porta.

Orlando: O que foi aquilo?
Eva: O quê?
Orlando: O modo como agiu...
Eva: Ah, por favor, ela iria cair...
Orlando: Você disse “filha”.
Eva: Isso é normal, um jeito de falar, não quer dizer...
Orlando: Quando a adotamos, concordamos que não a trataríamos assim, não desenvolveríamos sentimentos paternais! Você sabe o perigo disso!

Eva estava chegando ao seu limite. Há vários meses, uma angústia silenciosa e aguda castiga seu coração, provocando incerteza e calafrios. O comportamento cheio de mistérios do marido só piora a situação. Ela respira fundo, fala mastigando as palavras:
Eva: Eu não sei até onde agüento... Não assim, com você me tratando desse jeito agressivo...

A melancolia e o meio tom desesperado de sua voz o atingiram em cheio, despertou a compaixão guardada a sete chaves. Ele a pegou pelas mãos. Sentaram-se na beirada da cama. Com a voz clara e calma, começou:

Orlando: Preciso te confessar algo.... Preciso da sua sabedoria, como sempre tenho precisando... Quero te contar algo sobre minha mãe.

BANG!

Os dias passam, o inspetor Benedito e seu assistente seguem os passos do Sr. Shelley. Nesse ponto, o inspetor é um mestre. Seus colegas o chamam de “homem-invisível”, devido a sua exímia habilidade de ocultar-se na paisagem. Agora, eles se encontram a poucos metros da casa de Diana. Shelley a tem visitado regularmente. Benedito registrou cada visita em sua caderneta, o dia e a hora. E a cada visita, tem demorado mais. Após a anotação, fechou a caderneta e aumentou o volume do som, afinal esta era a sua preferida do vasto repertório de Bob Dylan.

And you know something is happenig here
But you don’t know what it is
Do you, mister Jones ?


Assistente : Pô, não tem outro cd? Esse cara é chato demais!

BANG!

Enquanto isso, no deserto, o Astrólogo termina o desenho das constelações na areia. Os cálculos foram vistos e revistos, dificilmente as estrelas se alinharão. Durante meses buscou uma explicação para o fenômeno, encontrou uma plausível no deslocamento de Plutão – por exemplo, os astrônomos descobriram outro planeta cuja antiga órbita de Plutão ocultava. No entanto, o Maestro compreendeu a questão pela teoria da relatividade de Einstein, a qual interpretou de forma peculiar baseado na teoria do acaso. Seja como for, para o Astrólogo não resta a menor dúvida: a cerimônia não deveria ser realizada.

BANG!

Dois dias após revelar para a esposa o demente estado em que encontrou sua mãe, Orlando conversa com Pedro Cigano. Caminhando pelo jardim da Casa Michel Foucault, o emérito psicanalista e ocultista tenta explicar, ao apavorado filho, que talvez seja melhor não penetrar nas profundezas de uma mente perturbada, pois o resultado final pode ser um permanente estado catatônico.

Orlando: Gostaria que tentasse...
Pedro Cigano: No estado mental em que ela se encontra, mesmo a hipnose profunda não garante uma possibilidade segura de regressão.
Orlando: Eu li seu artigo sobre hipnose e condicionamento, se o entendi bem, é possível, em casos extremos de esquizofrenia, condicionar o comportamento do doente em uma personalidade específica.
Pedro Cigano: É uma hipótese. Através da hipnose, podemos condicionar a um comportamento específico, no seu caso, podemos condicioná-la ao papel de uma mãe protetora, ou seja, o seu desejo. Porém, se não houver o sentimento materno em seu espírito, ela reagirá a sua presença como um robô. É isso que quer?
Orlando: Eu quero que ela me reconheça!
Pedro Cigano: E aí está seu erro. Encare os fatos por outra perspectiva - ela deve te conhecer. Em seu relatório, a psiquiatra responsável aponta que, em determinados momentos, a paciente se comporta de forma lúcida.
Orlando: Li o relatório, em nenhum momento menciona que tenha se lembrado de mim.
Pedro Cigano: O passado é uma prisão e a mente de sua mãe está livre.
Orlando: Espero algo além de uma frase de efeito.
Pedro Cigano: Não se apegue à possibilidade dela o reconhecer como filho, concentre-se na possibilidade dela te conhecer como outra pessoa, como um velho amigo ou um amante.
Orlando: Eu quero saber por que ela me abandonou! Se não me reconhecer, nunca poderá responder.
Pedro Cigano: E o que fará depois? Vai abandoná-la aqui? Ou integrá-la a sua vida? Depois da cerimônia, seu poder e influência atingirão outros patamares. Imagine seus inimigos, agindo nas sombras, o que farão depois de conhecê-la? Não será difícil descobrir o amante. Como irá agir quando disserem que sua mãe foi uma vadia?
Orlando: Está me ofendendo...
Pedro Cigano: Pois bem, se eu, que selei um pacto de silêncio com você, te enervei... Imagine seus inimigos? Irão te desestabilizar emocionalmente. Reflita um pouco mais. Já a encontrou, está sob sua proteção. Mantenha uma visita regular, seja próximo, embarque nos delírios dela... Assim talvez encontre o que procura, mas não faça a busca a causa de sua ruína.

BANG!

Nos dias seguintes, Elias finalmente ligou para Ana. Os dois passaram a fazer longas caminhadas, ao final da tarde, sempre escolhendo a esmo o caminho. Nessas ocasiões, Ana lhe explicava a causa de seu rompimento com a Ordem, e como encontrou uma nova orientação.

Ana: Nós vivemos em um mundo ainda ignorante e arrogante. Nós pedimos bem-estar e recebemos riquezas medidas apenas pelo ouro. Todas as promessas são cumpridas, e nós ganhamos, mediante nossos sacrifícios, sucesso e dinheiro. Nós não passamos fome, não temos patrões. Por isso, acreditamos que somos livres. E aí está a nossa fragilidade. Apesar de toda a nossa "riqueza e liberdade", não encontramos uma explicação confortável para as tragédias que nos aflige, agimos como cegos em um mundo de escuridão.

Elias ouvia essas palavras como um desesperado ouve o sermão do pastor. Pouco a pouco, começava a acreditar nelas. Em meio à melancolia que vivia desde a perda da esposa, os passeios com Ana arejavam o seu espírito. Um dia, ela lhe perguntou se gostaria de conhecer uma pessoa, o principal agente transformador de sua vida. Ele aceitou. No dia seguinte, foi apresentado a um sujeito baixo, com a pele do rosto roseada, a barba branca bem aparada, uma voz harmoniosa, cujo próprio sentido do nome aludia à boa palavra.

Elias: Foi um imenso prazer conversar com senhor... Benedito!

BANG!

(na próxima semana: Parafuso hesita).

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Malditos - Cap. XVI

A roda da fortuna

Enquanto Diana e Parafuso curtiam um embalo romântico, dois altos membros da Ordem se reuniam em uma cobertura. A reunião foi marcada em caráter extraordinário, sem muito tempo para os detalhes. O secretário particular rebolou para cuidar de tudo: a limpeza dos cômodos, a comida, a bebida, as garotas.

Secretário: Senador, finalmente consegui falar com o Esfinge. Em uma hora estará aqui...

A pauta da reunião: os desdobramentos relacionados ao acidente do ambientalista. O Senador ainda não compreende como um assunto local pode, de uma hora para outra, interferir tanto no maior projeto da Ordem. Para ele, é incompreensível o fato de um inspetor da polícia federal incomodá-los como uma mosca varejeira. Somente uma pessoa poderia esclarecê-lo: Alexander C. Shelley, o sogro de Orlando.

Shelley: Como estão as coisas no senado?
Senador: Pegando fogo! É como se andássemos descalços em um covil. Em cada sorriso, um punhal.

O Senador pediu duas doses de uísque ao secretário. Após servi-los, o serviçal se dirigiu à cozinha, resmungando consigo mesmo.
Senador: Como estão as coisas na cidade?
Shelley: Mais complicadas do que no senado!

Enquanto ouvia o relato dos últimos acontecimentos, o Senador foi um compêndio de gestos contraditórios. À morte do ambientalista, riu de canto de boca; à menção da investigação do inspetor, secou a bebida e bateu nervosamente o copo sobre a mesa.

Senador: Nós o deixamos ir longe demais... Não acha?
Shelley: Os tempos são outros, mestre... Vivemos em uma democracia...

O Senador o silenciou com um olhar severo. Depois se levantou, lançou algumas pedras de gelo no copo recém abastecido.

Senador: E você ainda casa sua filha com um...
Shelley: Não despreze o potencial de Orlando...
Senador: Como desprezar? Eu mesmo não assinei petição para sua admissão na Ordem? Eu mesmo não serei uma das testemunhas em sua cerimônia de consagração?
Shelley: São novos tempos...
Senador: Entendo bem os “novos tempos” e, sobretudo, a “democracia”. O que não entendo é como um negócio tão importante para Ordem, relativamente simples, ganhe tamanha dimensão. Seja sincero, esse investigador sabe algo sobre a mina de urânio?
Shelley: Se soubesse, já saberíamos!
Senador: Então...
Shelley: O homem é um obsessivo... Há anos vem nos investigando... Mas existe algo que o senhor ignora. Ele pertence à Ordem Iluminista. Se estivéssemos no século XV, talvez fosse o grande inquisidor.
Senador: Estamos no século XXI.
Shelley: Por isso precisamos de um guerreiro racional e místico... E não encontramos ninguém melhor do que Orlando.

O diálogo terminou em um silêncio interrogativo, quebrado pela entrada do serviçal.

Secretário: O prefeito acaba de chegar.

O Senador e Shelley levantaram-se imediatamente, se entreolhando curiosos e apreensivos.

Para monopolizar a mina de urânio, a Ordem precisa – legalmente – comprar o terreno onde a jazida se encontra. Seus altos membros devem agir rápido, antes dos técnicos do Ministério das Minas e Energia. Por isso acionaram um braço menor, a construtora Marinhos & Santos, encarregada de executar o projeto de construção de um complexo hoteleiro na vila Atlântida. Desse modo, enquanto ricos entediados praticam ioga e esportes radicais, seus técnicos estão lá, quietinhos, retirando urânio, bombardeando o urânio de nêutrons, negociando com os países carentes de energia nuclear.

Porém, para dar o primeiro passo, é preciso convencer as várias famílias de pescadores que moram na vila. O ambientalista, ignorando a mina de urânio, considerou o projeto uma exploração da terra, além de injusto com seus moradores, por isso resolveu defendê-los. Foi assim que entrou e morreu nessa história.

Rei morto, rei posto. Daí a necessidade de contar com o prefeito como aliado.

Senador: Como é esse prefeito?
Shelley: Politicamente correto.

Quando o prefeito surgiu, o Senador cravou seus olhos de águia sobre ele. Aparentava uns trinta anos, magro, cabelo bem cortado com alguns fios grisalhos. Shelley, após as saudações, foi direto ao assunto.

Shelley: O prazo que o senhor nos deu já expirou. Já se passaram cinco meses desde o acidente... Uma secretaria não pode ficar tanto tempo administrada interinamente... Enfim, irá aceitar ou não a nossa indicação?

Com uma voz educada e firme, o gestor se justificou:

Prefeito: Os senhores hão de convir que a situação mudou bastante. Não sei se estão a par de alguns detalhes sobre o caso, mas poucas horas antes do acidente, a vítima foi ameaçada de morte... Pelo seu genro!

Mais uma vez o silêncio se impôs. Ninguém na sala imaginava por que Orlando agira assim, porém, todos concordavam que fora uma atitude estúpida. Restou ao sogro a responsabilidade de explicar o inexplicável.

Shelley: A perícia comprovou que o acidente ocorreu devido ao rompimento da barra de direção. Além disso, a autópsia revelou que a vítima estava drogada.

O prefeito ponderou a situação. Sua intuição, no entanto, lhe dizia que havia mais, caso contrário, sua presença não seria tão importante. Embora ambicioso, não era um homem vaidoso. E nós sabemos que os vaidosos são os mais fáceis de serem manipulados.

Prefeito: Algumas críticas do falecido tinham fundamento, preciso considerá-las. Por exemplo, o município, ou pelo menos seu representante máximo, tem o direito ter acesso aos estudos geológicos dos seus técnicos.
Senador: Nós temos cara de mafiosos para o senhor?

A pergunta não só foi despropositada, como fora dita em tom imperativo. Era apenas um truque da velha raposa. Seu método consistia em dizer alguma frase ameaçadora, em tom grave e de forma inesperada, para testar psicologicamente o adversário.

Prefeito: Não estou aqui para acusações.... Porém... Não posso fechar um acordo de olhos vendados.

O Senador e o Shelley trocaram um olhar cúmplice. Em determinado momento da elaboração do projeto Nova Gênese, consideraram essa situação. Se não fosse pela audácia do ambientalista, seria desnecessário um acordo com o prefeito. Senador pensava: “Até morto o maldito hippie sujo atrapalha”.

Shelley: Por isso marcamos esta reunião: para acertamos detalhes, esclarecer dúvidas, enfim, selar definitivamente nossa aliança.

Mais uma vez o mordomo surgiu para anunciar dois aliados importantes: o Empresário e o Empreiteiro, os proprietários da construtora.

Reunidos em torno da mesa, os sócios discutiram a condução do projeto, analisaram planilhas de custos, divergiram nos números, encheram copos e mais copos de uísque, embora o prefeito tenha preferido água. Animado, Shelley propôs ligar imediatamente para o geólogo que pretendiam por no gabinete, mas o prefeito, com seu jeito suave, desviou a atenção para outra analisada nas planilhas.

Empreiteiro: Com todo respeito, mas o seu genro é um moleque estúpido!
Empresário: Não trato mais nenhum assunto com ele, aliás, sugiro seu desligamento do projeto.

Orlando devia satisfações ao grupo, principalmente ao Senador. Contudo, foi o último a comparecer. O Empreiteiro pretendia “humilhá-lo”. O Empresário não sabia “como lidar com ele sem entrar em atrito com o Shelley”. Por fim, quando apareceu na sala, sua aparência desleixada deixou todos perplexos. O Senador pensou: “Ele está acabado!”.

Sogro: Orlando... O que aconteceu?
Orlando: Não tenho tido muito tempo para um sono adequado.
Empreiteiro: Você é um incompetente... Um irresponsável!

Orlando olhou com raiva o interlocutor, não tratou de disfarçá-la.

Orlando: Qualquer associação entre a morte do ambientalista e a sua construtora será uma mera hipótese sem dados concretos para comprovação.

O Empreiteiro estava exaltado, batia o punho sobre a mesa, mordia as mãos, gritava:

Empreiteiro: Você apontou uma arma, tem testemunhas... Arrgh!

Embora tenha suas reservas em relação à personalidade de Orlando, principalmente devido às suas origens na classe média, o Senador gostou de sua reação diante do touro enfurecido.

Shelley: Orlando, você deverá se afastar do projeto. Além de ter cumprido sua função, neutralizar o ambientalista...
Empreiteiro: “Neutralizar?!?”... Porra, ele matou o cara!
Shelley: ... há outros assuntos importantes que exigem sua total dedicação.

O sogro se referia à proximidade da realização da cerimônia.

Orlando: Entendo. Tenho apenas uma última declaração: o inspetor Benedito tem um informante dentro do nosso grupo.
Senador: O quê?
Empreiteiro: Não confio em nada que sai da sua boca!
Senador: Qual o fundamento da suspeita?
Orlando: Quando me interrogou, o inspetor fez algumas perguntas que somente alguém com acesso a detalhes do projeto faria.

A convicção de Orlando encheu o ambiente de tensão. O prefeito começou a estalar os dedos e bater os pés. O empreiteiro esbravejava sem ninguém lhe dar atenção. O empresário riscava um nome com as unhas sobre a mesa, há algum tempo desconfiava. O Senador lançou a mão sobre a testa: “E mais essa! Bando de idiotas!”.

Como um sopro refrescante de ar, o mordomo anunciou: “O sr. Esfinge acaba de chegar”. Em visível mudança de humor, o Senador levantou as mãos para o alto.

Senador: Senhores, creio que merecemos um pouco de distração.

Quando se tratava do Senador, Esfinge sempre escolhia as garotas mais jovens e animadas. Suas reuniões eram dignas de figurar no Satyricon.

Senador: As minhas ninfetinhas queridas... Mas só vai ganhar pirulito quem for obediente.

Enquanto os convidados se divertiam, o sogro levou o genro para outro cômodo. Além da preparação para a consagração exigir a abstenção sexual, o patriarca – até mesmo por causa de uma preocupação paternal – queria algumas explicações.

Sogro: Por que ameaçou um homem cuja morte tramou tão meticulosamente?

Orlando voltou a explicar que o fim do ambientalista não estava em seus planos, mas não era isso que o sogro queria ouvir.

Sogro: Quero o endereço e o telefone dela... Como é mesmo o nome?... Diana.

O genro passou todos os dados, embora soubesse que já os tinha.

Sogro: Sua aparência está horrível. Tire algumas semanas de folga... E lembre-se: a menina precisa ser preparada.
Orlando: Creio que a governanta que pôs em minha casa está cuidando disso.

Nunca Orlando havia sido tão ríspido. Após anos, encontrar sua mãe louca em um hospício o abalou profundamente.

Sogro: Por que não a deixou entrar no carro com o ambientalista?
Orlando: Quando a conhecer, entenderá.

Voltaram para a sala principal. O Senador começava a narrar suas divertidas histórias.

Senador: Estávamos em Brasília... Eu e mais cinco senadores. Discutíamos se aprovaríamos ou não um projeto que propunha férias e décimo terceiro para as putas... Rárárárá... Já pensou Esfinge?.. Aqueles safados corruptos acharam o projeto uma imoralidade. Até o lelé-da-cuca foi contra.
Ninfeta: E o senhor?
Senador: Minha querida, sabe o que fiz? Tirei o pau para fora, bati uma punheta e, com a própria porra, escrevi: aprovado!... Ora, sou contra a exploração do trabalho infantil.

Todos caíram em uma gargalhada uníssona. Até Orlando. A bem da verdade, o prefeito riu amarelo. No fundo, sentiu-se constrangido, inclusive pensou em partir após a chegada de Esfinge e suas meninas, mas não podia, por isso puxou uma garota e resolveu fingir.

Duas horas depois dos convidados partirem, a sós com Shelley, o Senador confidenciou sua opinião.

Senador: Espero que a única coisa que esse prefeito esconda seja a rola!
Shelley: Quando o senhor lhe oferecer a vaga no Congresso, ele cederá... Mas uma coisa me preocupa...
Senador: O comportamento do seu genro?
Shelley: Confio em Orlando... Sei que está escondendo algo, mas confio nele...
Senador: O que o preocupa então? Ou quem.
Shelley: Elias!
Senador: O meu sobrinho-neto?!?
Shelley: Ele realizou um ritual de reanimação sem a nossa consulta. Está se tornando rebelde.

(a seguir: Elias, o franco-atirador).

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Malditos - Cap. XV

As portas da percepção estão abertas

Diana aumentou o volume do aparelho de som, a voz grave de Jim Morrison surgia clara do além-túmulo:

She was a princess
Queen of the Highway
Sign on the road said:
take us to Madre
No one could save her

Todas as dúvidas em relação a Orlando brevemente suspensas. Os inúmeros registros das ligações do inspetor da polícia federal permanecerão sem respostas. Agora, a única coisa importante é a diversão. Mas é impossível se divertir sozinha. As companhias possíveis registradas na agenda do celular são inúteis: amigas falsas, coroas com suas pílulas de viagra e cartões de crédito. Ela não precisa de dinheiro. Só quer uma presença legal, alguém que não dê nada em troca além da sincera admiração. Nesse momento, só existe uma pessoa capaz disso.

Diana: Alô... Leandro, como está?... Então, vamos sair... Quero dançar, estou tão entediada! Topa?... Daqui a meia hora passo na sua casa!

Parafuso desligou o telefone surpreso e desconfiado. Olhou para as unhas sujas de graxa. Tinha pouco tempo para se arrumar. Começou fazendo a barba, depois cuidou das mãos, ligou o chuveiro: sabonete, condicionador, perfume. Experimentou uma, duas, três camisas... E a campainha tocou! Saiu correndo vestindo apenas a calça, abriu a porta...

Diana: Que recepção!
Parafuso: Achava que fosse demorar mais um pouco... Entre.
Diana: Pode terminar de se arrumar.

Diana se sentou no sofá, abriu a bolsa, pegou um estojo dourado, retirou um baseado, acendeu e, depois da primeira tragada, ofereceu a Parafuso, que recusou. Ela não sabe, mas o uso de drogas arruinou o seu casamento e quase o levou à sarjeta. Só os fortes sobrevivem – diria Keith Richards.

Parafuso: Estou pronto! Para onde vamos?
Diana: Ao Pow Pow Club... E eu dirijo!

Parafuso pensou em encostá-la na parede, tirar a verdade como um dentista tira um dente, porém ela abriu aquele sorriso lindo e o lembrou o quanto esperou por isso. Ah, deixa o interrogatório para amanhã. Antes de entrar no carro, ele averiguou a rua para se certificar se havia algum carro estranho.

Diana: O que foi?
Parafuso: Nada!

Ela deu a partida, fez a curva a 80 e esticou a 100 quando entrou na avenida principal, cantando junto com Iggy Pop:

callin' from the fun house with my song.
we been separated baby far too long.
callin' all you whoop-de pretty things.
shinin' in your freedom come and be my rings.

Enquanto esta amazona do século XXI dirigia elétrica, Parafuso voltava os olhos para trás de modo tenso e obsessivo.

Diana: Tem alguma coisa te preocupando?
Parafuso: Não! Por quê? Deveria?
Diana: Você não mudou nada.

Ela sorriu, passou levemente as mãos pela cabeça do carona. Depois acendeu o baseado que começara a fumar na casa do velho amigo, sem perceber que logo a frente havia...

Parafuso: Uma blitz da polícia! Puta-que pariu, apaga essa porra!
Diana: Relaxa, meu querido. Você está comigo.

Diana apontou para um adesivo colado no canto esquerdo do vidro da frente do carro. Parafuso reconheceu o símbolo. Ao verem a inscrição “poder judiciário”, os policiais abriram passagem. Para provocá-los, ela abriu o vidro do motorista, deixando sair o forte cheiro da erva, fez um sinal de continência e seguiu com o som no volume máximo.

Parafuso: Não precisava abusar. Se eu fosse um deles, te parava na hora!
Diana: Ainda bem que você está do meu lado, não é?

Ele não respondeu, apenas acendeu um cigarro e ficou imaginando o que ainda estava reservado para a noite. Esperava amanhecer com ela nua em sua cama.

O Pow Pow Club é um lugar onde os extraordinários se encontram. Na entrada há uma placa na qual se lê: celebridades não entram. É preciso muito mais do que dinheiro ou fama para entrar. É necessário algo a mais para dançar no salão. Sua localização é um segredo guardado a sete chaves. Eça de Queiroz gastaria páginas e mais páginas descrevendo cada detalhe do recinto – que pena que ele não está aqui. Quando um estranho aparece, não importa com quem esteja acompanhado, só entra se passar pelo crivo do proprietário – o Esfinge.

Parafuso: Que lugar é esse?

Diana coloca a mão no peito do amigo, indicando para esperá-la na entrada. Ela conversa com o porteiro. Este pega o celular. Parafuso faz um sinal para a amiga se aproximar.

Parafuso: Qual é a desse porteiro?
Diana: Aqui é um clube seleto...

Um sujeito baixo surge na porta de entrada.

Esfinge: Diana... Minha princesa.

Eles se abraçam como velhos conhecidos e conversam rapidamente. O desconfiômetro de Parafuso ultrapassa o limite vermelho, ainda mais depois deste diálogo.

Diana: Este é Leandro... Somos amigos de infância.
Esfinge: Ele não está vestido apropriadamente, tem um cabelo horrível, a coluna torta e é manco! Não sei... Eu gosto tanto de você, mas...

Analisou o mecânico de cima para baixo. Parafuso também cravou o olhar sobre o proprietário do clube, que vestia um terno preto listrado, lenço vermelho dobrado em v no bolso, calça de brim engomada, estilo mafioso.

Parafuso: Para mim, você com que essa estampa don Corleone, saiu do desenho da Penépole Charmosa...

Diana fez um esforço para não rir. O porteiro lançou um olhar pouco amistoso e escondeu uma das mãos na cintura.

Esfinge: Me dê um bom motivo, além de sua bela companhia, para deixá-lo entrar.
Parafuso: Eu estou aqui por acaso e não vou voltar.

Após segundos de silêncio, o proprietário sorriu, deixando à mostra os dentes caninos afiadíssimos.

Esfinge: Boa resposta...

Diante da situação inusitada, Parafuso esperava encontrar um ambiente de luxúria e perversão. Tudo era absolutamente normal. A música era boa e muito alta. As pessoas eram bonitas, e é claro olhavam com estranheza para ele. Havia um forte cheiro de cigarro misturado a álcool. “Mas pelo amor-de-Deus” – pensou – “isso é igual a qualquer lugar!”. Nada justificava a cena da entrada. Outra vez ela o submetia aos seus caprichos, por isso segurou firme o braço dela.

Parafuso: Qual é?
Diana: Nem tudo é o que parece.
Parafuso: Por que me trouxe aqui?

Diana o beijou na boca. O gosto agridoce dos seus lábios o remeteu a outro lugar, não era nem o passado e nem o presente, um espaço prazeroso no qual se sentia como um guerreiro, um instante que não deixaria acabar.

Diana: Agora quero dançar! Pega uma bebida para gente.

Como uma criança com a primeira bicicleta, Parafuso foi até o bar. “Que bebida eu levo?” – boa pergunta, afinal o que significa “uma bebida para gente”. Ah, ela é uma lady! Pegou a carta de bebidas, correndo o dedo pelos preços percebeu o significado de “clube seleto”. Ainda bem que Orlando havia depositado o adicional pelo trabalho sujo. Uh, péssima lembrança. Não! Pensamos nisso amanhã, sem dramas esta noite.

Barman: O que o senhor vai querer?
Parafuso: Um coquetel de morango com vodka... E um black label caprichado...

Ao passar pela pista até Diana, tentou preservar ao máximo o seu destilado, pois “cada gota está valendo o salário dos meus empregados”. Ao chegar, ela tomou de sua mão o copo de uísque. Após um longo gole, sussurrou ao seu ouvido: “ADORO JORGE BEN. VOCÊ GOSTA?”. Como um bom roqueiro das antigas, Parafuso não tinha o menor interesse por nada ligado a samba ou suingue; no entanto, tinha que ser sincero.

Parafuso: Acho legal.
Menina gata Augusta, menina Augusta gata
Menina, menina
O que ela vai comprar eu não sei
Mas se ela quiser comprar o meu amor
Eu lhe daria de graça

Sem lá muito ritmo para o samba rock, enjoado com o coquetel de morango, Parafuso voltou ao bar. Duplo black label. Ao voltar, encontrou Diana com uma mulher que o deixou sem oxigênio.

Diana: Vou ao banheiro... Não fuja!

A mulher olhou para ele com um indisfarçado desdém. E as duas seguiram sorrindo em trenzinho pelo salão. Ao entrar no reservado, a amiga esticou duas carreiras de cocaína, menor apenas que o seu sarcasmo.

Amiga: Fofa, o que é essa pessoa ao seu lado? O Sherek?!?
Diana: Se você ler Vitor Hugo, saberá que uma aparência grotesca esconde uma alma bela.
Amiga: Não é preciso leitura para saber que está com esse ogro por carência...

A frase foi uma dura estacada em seu orgulho. Enquanto a amiga da onça limpava o nariz diante do espelho, Diana via o reflexo de sua fragilidade e não se reconhecia. Ela deixou a fútil...

Amiga: Ei, disse alguma coisa?

Voltou ao salão...

Diana: Leandro, vamos embora...
Parafuso: Demorou...

O caminho de volta foi lento e silencioso. Cada um imerso em seus dilemas. Antes de abrir a porta de sua casa, Parafuso se deu conta de um fato: “Ela sempre me chamou pelo meu nome”. A constatação cobriu como um véu sua desconfiança.

Leandro: A casa está meio bagunçada.
Diana: Não tem importância.

O sol nascia iluminando seus corpos nus.

Leandro: Sonhei por esse momento durante anos. Apesar de tudo, Orlando sempre foi o meu melhor amigo.
Diana: Os melhores amigos são os maiores traidores.

(a seguir: uma aula de política com o Senador)

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Malditos - cap. XIV


Só elas são felizes


Orlando viveu com sua mãe até os sete anos. Tudo de útil aprendeu com ela: falar, escrever, analisar as pessoas. Agora, dirigindo rápido e ansioso, esperando reencontrá-la depois de décadas, ouve voz dela e sente o cheiro ausente do seu colo. Essa lembrança é doce e serena, o quinhão de sua glória, cujo cego destino pretende privá-lo.

A mãe embalou seu sono com as narrativas dos mestres da narrativa infantil. Adulto, estudou a fundo o imaginário de Perrault, Grimm e Andersen - os prediletos da casa. Quem os leu, sabe: a infância é uma peça de terror, cheia de privações e violência, sofrimento e abandono. Na estrada, Orlando lembra do pai voltando tarde do trabalho, com os desinteressantes almanaques do Capitão-América, os quais vendia aos colegas da escola.

Acelerava o Mercedes. Os carros a sua frente iam para o lado direito da pista, como zebras diante de leões famintos. Vários motoristas sentem esse tipo de superioridade nas rodovias, a sensação de perigo, espécie de teste de coragem ou a última gota de audácia reservada ao homem comum. Nada disso importa para Orlando e seu velocímetro – 120, 140, 180... Absorto no passado, o tempo corre devagar. Ele ainda tem nove anos, está sozinho no quarto, sem sono e sem histórias, o pai bêbado na sala.

A cada curva, uma velha recordação e um novo significado. Quando a mãe, pela primeira noite não amanheceu em casa, ninguém lhe disse a verdade. Nos dias seguintes, as tias e tios respondiam que ela voltaria logo. A criança perguntava se seria amanhã, a única resposta era um olhar de pena. O menino dormia e acordava esperando encontrá-la em qualquer canto da casa. Um dia, seu pai chegou com outra mulher.

Demorou anos para Orlando compreender a realidade a sua volta. Ao entrar na adolescência, como se sua vida fosse uma quebra-cabeças, começou a combinar peças. Às perguntas sem respostas, formulou hipóteses. Tornou-se arredio e analítico. Nas festas familiares, nada falava e tudo observava. Eram nessas ocasiões que mais sentia vergonha do pai. Sobre ele, os comentários giravam em círculo: “Não merecia”, “um homem bom”, “trabalhador”, “ainda encontrará alguém que o mereça”. Cresceu ouvindo essas qualificações e outras mais, para que se orgulhasse do genitor. Ocorreu o contrário. O filho relacionou “humilde” e “honesto” a uma vida medíocre.

Tinha vinte anos quando seu pai morreu de cirrose hepática. Os dois mal se falavam. Faleceu lamentando o fato do filho ter saído o inverso dele. Enquanto lançavam a pá de cal, os parentes estranharam a ausência de uma lágrima no ingrato. Quando partiu do enterro, antes de todos, ele ainda pode ouvir a avó paterna: “É igual à mãe, sem coração”. Esse foi o último contato com sua família. Em seu julgamento final, o pai foi o único culpado pelo afastamento da mãe.
Mas é solução fácil atribuir ao outro a causa de nosso sofrimento. A vida é quebra-cabeça que não se encaixa ou resposta desagradável a uma pergunta inconveniente.
Orlando nasceu com uma inteligência notável. Desde criança aprendia rápido. Na faculdade, logo se destacou e, muito antes de receber o diploma, seus professores já o indicavam a clientes especiais, como o seu futuro sogro. Atração pelo desafio e o amor à glória. Por isso os altos membros da Ordem estão dispostos a ignorar alguns fundamentos da tradição, para ter entre eles alguém com o espírito do século XXI. Somente ignoram que esse ser excepcional nunca conseguiu responder à questão mais importante e elementar de sua vida: “por que ela me abandonou?”. Convenhamos que isso é bem compreensível, afinal, nem Jesus Cristo aceitou bem a rejeição.

Encontrá-la tornou-se uma obsessão. Trabalhou duro para obter os meios necessários. Uma busca difícil, para alguns impossível, não possuía nenhum retrato da mãe, todos queimados pelo marido em uma noite de fúria. Nos últimos anos, Orlando chegou à conclusão que, a ausência de uma resposta, o tornaria idêntico ao pai, um homem fraco.

Finalmente, depois de sete horas dirigindo, chegou ao ponto marcado pelo detetive: um restaurante na estrada. Ele já o esperava na porta. Antes de abri-la, Orlando voltou por um segundo ao último encontro entre eles. Abriu o vidro do carro.

Detetive: O senhor chegou bem mais rápido que eu esperava. Eu posso entrar?

Abriu a porta desconfiado, uma dúvida o incomodava: esse senhor foi humilhado, é natural que tente uma vingança, e há muitas pessoas que matam barato. Orlando conhece dezenas delas.

Detetive: Sua mãe está em lugar um pouco longe daqui.

Estava óbvio demais. Por um instante, considerou a hipótese de chutá-lo para fora. Fora estúpido. Regra número um: nunca confie em alguém que te enganou.. Ligou o carro.

Detetive: Dobre aqui... Vamos até o final desta estrada.

Eles entraram em uma estrada de chão. Uma paisagem bucólica e abandonada se abria aos olhos de Orlando. Se estivesse de férias, admiraria o verde da montanha, a água cristalina descendo melodiosa pelo riacho, se sentiria tocado com a dignidade no olhar doce dos poucos moradores, em suas humildes casas. Mas para ele, esse cenário era o enredo da traição. Enquanto seguia pelo caminho indicado, com o detetive insistindo para diminuir a velocidade, procurava atrás de cada rocha, entre as árvores, alguém escondido, com a arma engatilhada e a mira feita. Se estivesse no banco do carona, faria assim, pois toda a humilhação exige uma reação.

Detetive: Pare! É aqui.

Orlando olhou para o encardido muro de entrada, coberto por pichações adolescentes – From Stª Rita das Flores to hell... Depois mirou para a inscrição no arco do portão: Asilo Michel Foucault.

Orlando: O que é isso?
Detetive: O que o senhor imagina?

Um hospital psiquiátrico. O mundo é um hospício.

No interior do asilo, a diretora os esperava na recepção. Ela vestia uma calça jeans surrada e uma hering branca, cabelo longo grisalho desgrenhado, parecia uma guerrilheira dos tempos de Medici. O detetive conversou a sós com ela durante alguns minutos, tudo cheirava a outra farsa. Em seu íntimo, Orlando desejava isso: outra encenação, outra quebra de dentes, outra oportunidade para encontrar a verdade confortável. Ao invés disso, a diretora se aproximou dele segurando um caderno de capa dura.

Diretora: Há três anos não recebe uma visita... Ela foi internada aqui pelo marido, assinou todos os protocolos, e nunca mais voltou. Quer conferir os dados?

Orlando conferiu o único documento existente sobre a paciente: Virgínia Maria Assis de Alencar. Tudo batia, o local e a data de nascimento, o nome de seus avós maternos.
Diretora: Sua certidão de nascimento é o único documento...

Não havia dúvida.
Orlando: È a minha mãe.

O coração do filho batia forte, o corpo inteiro tremia.

Orlando: Onde ela está?

Antes de responder, a diretora comparou os dados pessoais de Orlando com os da paciente, e só fez isso porque tinha antipatizado com ele. Feito o preenchimento dos protocolos, ela o encaminhou pelas dependências do asilo até o jardim. Sob a sombra da mangueira, uma mulher de rosto magro gesticulava no vazio como se regesse uma orquestra.

Diretora: Pode ficar a vontade...

A diretora e o detetive voltaram para a recepção. Orlando tomou pelas mãos o rosto indiferente da moribunda. Os olhos, o desenho dos lábios e as mãos, tudo familiar. Havia uma única dúvida.
Orlando: Mãe...

A mulher o olhou com uma expressão vazia e dopada.
Louca: Quem é você?
Orlando: Sou seu filho...
Louca: Filho?!? Qual? Eu tenho tantos... Está vendo aquele macaco, é meu filho! E aquele falcão voando no alto, é meu filho! E essa formiga...

Ao lado da mulher havia uma toalha estendida e maçãs repletas de formigas. Ela pegou duas delas e as comeu. Ao ver essa cena, o coração de Orlando gelou de pavor e nojo. Ele tomou o fruto da mão materna, soprou para longe todas as mordedoras até deixar a fruta limpa.

Louca: Seu burro!

A mãe jogou para longe a maçã.

Louca: Eu uso a maçã para atrai-las... As formigas! Huumm... Elas são deliciosas...

E soltou um riso insano...

Louca: São crocantes... Delícia! Delícia!

Orlando pegou as frutas e as lançou longe. Descontrolada, a mãe o agrediu com pontapés e palavrões, depois enfiou os dedos no solo retirando enormes pedaços de raiz de grama, os quais devorou até engasgar. Os enfermeiros chegaram, a amarram e aplicaram uma injeção. A diretora correu em direção ao filho aflito.

Diretora: Deixe! Não há nada que você possa fazer agora.

Após ver sua mãe sedada em uma cama, ouviu a longa explicação psiquiátrica da diretora. E ainda mais: as dificuldades financeiras para manter a casa de repouso, o desinteresse dos familiares, e etc e etc e etc. Assinou um cheque considerável com o coração sangrando. Depois assinou outra folha para o detetive...

Orlando: Isso é pelo seu silêncio.

Antes de partir, deixou com a diretora seus números privados:
Orlando: Me ligue semanalmente... Vou enviar um psicólogo particular... Alguma oposição?
Diretora: Não, senhor!

Entrou no carro sentindo um conflito de emoções, tristeza profunda misturada à revolta, sensação de desilusão e alívio. Havia atingido o objetivo desejado. Mas o troféu ardia em suas mãos. Quando finalmente as lágrimas brotaram em seus olhos foi com raiva. Pegou o celular à procura do número do psicólogo associado à Ordem, sua fama é notória, dizem que é um mestre da hipnose, seu nome: Pedro Cigano.

(a seguir: uma noite quente com Diana).

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Malditos - Cap. XIII

Vida em família

Certa vez, indo para o trabalho, um homem pacato rabiscou a seguinte frase na poltrona do ônibus: quando julgar seus atos, seja tão severo quanto foi ao julgar os outros. Os passageiros não olharam espantados, nem o prenderam por vandalismo. Conheciam a reputação daquele homem. Talvez hoje sintam sua falta, ou se perguntem por onde anda sua criança. É! Ele teve um filho, uma família. Quando o bebê nasceu, queria chamá-lo Pedro, por causa da religião. Mas sua esposa preferiu outro nome: Orlando.

Desde a adolescência, Orlando desenvolveu um sentimento de desprezo pela sociedade. E um desdém maior pelos seguidores dos preceitos democráticos. “É um regime covarde. Todos são um e um governa todos. Quando algum inconformado perturba a ordem do sistema, apela-se para o único meio conhecido de silenciá-lo: a calúnia. Eu nunca gostei de uma luta injusta”.

No colégio havia sempre um líder carismático, ele dizia: “vamos arrebentar aquele otário”, e nove camaradas caíam matando, enquanto o líder admirava o seu poder sobre os semelhantes. Esse foi o primeiro problema de Orlando com a sociedade, a coletividade precisa de uma figura carismática para representá-la. “É um regime de servidão” – pensa, enquanto organiza os livros em sua biblioteca, na companhia de sua esposa.

Orlando: No fundo, tenho pena dos líderes carismáticos!
Eva: O quê?
Orlando: Os líderes carismáticos...
Eva: O que tem eles?
Orlando: São uns tolos! Quando vão além dos seus limites, confiantes em seu poder sobre as pessoas, são jogados à realidade: a cabeça na guilhotina ou seu nome na malhação de Judas.
Eva: E quando desagradam seus aliados, estes recorrem ao melhor instrumento de mudança no poder: a traição.

Esse comentário, aparentemente prosaico, encheu de graça os olhos frios de Orlando. Por isso se apaixonou por ela, a única pessoa com a qual conversa em pé-de-igualdade. Não que não seja bonita, pelo contrário.
Orlando: Encontrou os livros da Virginia Woolf?
Eva: Por que está tão obcecado? Seu nome de batismo foi uma homenagem ao romance? Eu já li...
Orlando: Gostou?
Eva: Só da primeira parte. Eu não sei nada sobre a sua infância...
Orlando: Já te disse: meus pais morreram quanto eu tinha dezoito anos.
Eva: Morreram juntos?
Orlando: Há ainda mais alguma coisa para conversarmos sobre isso?

Ao longo desse diálogo, Eva permaneceu de joelhos, à altura da cintura do marido. Ela se levantou, girou as mãos sobre os ombros do companheiro, com um olhar doce e ameaçador, perguntou:

Eva: Você seria capaz de me trair?

Uma onda elétrica percorreu a espinha de Orlando. Sua primeira atitude foi desviar o rosto do olhar da esposa. Impressionado com a astúcia da mulher, andou alguns passos pela biblioteca.

Orlando: Qual a razão de sua desconfiança?
Eva: Por que não me responde.
Orlando: Os negócios da Ordem têm tomado muito do meu tempo, temos conversado pouco, por isso...
Eva: Tem decidido por si só o que faremos na nossa cerimônia!
Ao ouvir essa frase, Orlando respirou aliviado, chegou quase a rir da ingenuidade da esposa. Em um ato espontâneo, apertou levemente nariz dela como se tratasse uma criança. Ela repeliu o gesto.
Orlando: Ei! Está naqueles dias?
Eva: Por que não deseja a presença do meu primo na cerimônia? Ah, perdeu o ar confiante.
Orlando: Eu iria te consultar...
Eva: E por que não consultou?

Orlando passou da leveza à aspereza, em um segundo.

Orlando: CHEGA!... Eu não gosto do Elias, tenho motivos, você sabe!
Eva: Tem inveja dele! Inveja!

Tomado subitamente por uma raiva imprevisível, ele apertou o braço direito da esposa, seus olhos ardiam e a boca espumava:

Orlando: Seu primo é um fraco! Um mimado. O que ele fez quando sua mulher mais precisou dele?
Eva: Não diga isso... Não diga!
Orlando: RESPONDA!

A mulher caiu em um choro convulsivo. Seus soluços, somados aos gritos do marido, ecoaram por toda a casa. A menina, que assistia televisão, assustou-se. Mas como toda pequena, a curiosidade foi mais forte que a tremedeira. Quietinha, foi se esgueirando pela parede, até chegar à porta e ver o que acontecia lá dentro. Quando Orlando a encarou, o medo voltou. Ele gritou para governanta:
Orlando: A senhora pode tirar essa criança daqui! Leve-a para o quintal.

Eva se recompunha, secava as lágrimas com as mãos, respirava fundo, tentando retomar o controle da situação. Ele nunca agira de forma tão violenta. Aliás, até esse dia, exercia um domínio absoluto sobre o marido. Talvez fosse a proximidade da cerimônia – ela suspirou fundo – talvez a tensão do trabalho. Para entrar oficialmente na Ordem, tem sido exigido além do que qualquer outro foi. Percebendo o estado da esposa, Orlando se lançou aos seus pés, beijou as últimas lágrimas escorrendo dos seus olhos.
Orlando: Desculpe, minha querida... Eu devia ter te consultado.
Eva: Você não tem autoridade para vetar a presença do meu primo... Somente um membro da família tem essa autoridade. O nome disso é tradição
.
Afastou-se do marido. Em silêncio, Orlando voltou o olhar para os livros na estante. Com o orgulho ferido, Eva saiu da biblioteca, não sem antes bater a porta. Entrou no quarto de casal, passou o trinco, sentou desoladamente na beira da cama. Olhando através da janela a paisagem do seu quintal, uma sensação de insegurança gelou seu coração. Depois da visita do primo, começou a sentir uma estranha palpitação, às vezes um vento gelado na nuca, uma espécie de má premonição ainda sem forma.
Orlando continuou na biblioteca, havia perdido o interesse pelo livro de Virginia Woolf. Uma dúvida surgiu: será que Elias pretende fazer a cabeça de sua esposa? Ele sentou em sua mesa, olhar fechado, batendo nervosamente os dedos sobre a madeira. Será que agira de modo precipitado? Mas o sogro concordara, a presença do sobrinho, além de desnecessária, poderá ser negativa. E se assim como ela, outros membros da Ordem considerarem um desrespeito a petição? Em meio há tantas indagações, não percebera a chegada da governanta:
Governanta: Senhor, há um oficial da polícia federal na portaria... O que faço?

Era como se estivesse em uma montanha russa de emoções. Ou uma roleta russa. Evidentemente, trata-se do mesmo oficial que procurara Parafuso. Óbvio que seu nome deveria estar na lista de suspeitos.
Governanta: Senhor?
Orlando: Peça para entrar e me encontrar aqui.

O inspetor Benedito e seu assistente esperavam no portão de entrada, após ouvir a confirmação da governanta, seguiram lentamente com o carro todo o percurso até a casa de Orlando. Observando a suntuosidade da residência, o oficial soltou o seguinte comentário:

Assistente: Oh, mundo injusto! Não é chefe? A gente pode trabalhar cem anos e não moraremos numa mansão como essa!
Inspetor: Por isso estamos aqui, para fazer justiça.

Ao estacionarem nos fundos da casa, um empregado os aguardava. Era um sujeito magro, vestia uma bermuda suja de terra. O jardineiro os encaminhou pela cozinha até o encontro de uma empregada, vestida em um impecável uniforme branco, parecia uma enfermeira. A copeira os levou até a biblioteca do patrão. As retinas dos dois policiais fotografavam cada detalhe da rica decoração: as esculturas africanas, os quadros – “seria aquele um Magritte legítimo?” -, nem uma partícula de poeira sobre os móveis. Um ambiente tão organizado e opulento que oprimia os visitantes. A porta da biblioteca se abriu. Orlando recebeu os oficiais de um jeito casual.

Inspetor: É uma bela biblioteca.

De fato. O casal a recebera de presente dos avós maternos da esposa. Para abrigar os mais de sete mil livros, escolheram a enorme sala no primeiro andar da casa, fartamente iluminada pela luz natural e bem arejada. As estantes foram construídas com madeiras de lei. Em uma rápida olhada, o inspetor pode ver – e tentou memorizar – títulos raros e desconhecidos: O líber al vel legis, Fama fraternitatis e o obscuro Mutus líber.

Orlando: Pois bem, senhores...
Inspetor: Certamente não imagina o motivo de nossa visita...

Internamente, Orlando comparava a presença do inspetor com a descrição que Parafuso lhe fizera. Parecia uma figura inofensiva – “Vê se ele não lembra o Jô Soares”, o parceiro lhe dissera aos risos. Porém, talvez a aparência inocente oculte uma serpente. Seu assistente o remetia diretamente aos milhões filmes policiais. Com toda a certeza, não estava diante de um Dirty Harry.

Orlando: Se o senhor pudesse ser mais direto ficaria grato, pois tenho alguns assuntos urgentes para tratar...
Assistente: É como se diz: advogado é igual a papel higiênico, quando não está enrolado, está na merda.

Orlando mirou o engraçadinho, mas nada respondeu. O assistente, ainda com um riso irônico entre os lábios, mexia nos livros na estante.

Assistente: Há alguma Playboy?
Orlando: Na última estante há uma edição de Safo... Sabe ler em grego?

E voltou para o inspetor um olhar ao mesmo tempo curioso e impaciente.

Inspetor: Senhor Orlando, não gostaríamos de tomar muito do seu tempo, por isso evitamos o transtorno de intimá-lo, já que é um homem ocupado... E pelo visto, um pai de família.

O inspetor olhava pela janela a menina brincando com a governanta no quintal. Orlando se levantou da cadeira em que estava sentado e fechou a cortina.

Orlando: É a neta da governanta.
Assistente: E o pai mora nesta casa?

A situação começava a ficar tensa. Estava claro que a função do assistente era incomodá-lo com provocações e piadinhas, enquanto o inspetor analisava suas reações. Orlando chama copeira:

Orlando: Traga uma garrafa de café, uma de água e alguns biscoitos para as visitas... Creio que a conversa será longa.

Nenhum detalhe gestual escapava dos olhos argutos do inspetor. O assistente insistia em se comportar de forma insolente, tanto que acedera um cigarro e, a pretexto de encontrar um cinzeiro, remexia nos objetos, por fim resolveu bater as cinza sobre o vaso de orquídeas. Cultivar orquídeas é uma paixão na vida de Orlando. Nada disso havia sido combinado entre o assistente e o inspetor. Poderíamos dizer que ocorria um belo improviso naquela biblioteca.

Inspetor: Senhor Orlando, não sei se está acompanhando o caso envolvendo a morte do secretário do meio ambiente...
Orlando: Superficialmente!
Inspetor: Isso é espantoso, deveria ficar mais a par do processo...

O investigador interrompeu a frase para ficar olho a olho com o suspeito. Orlando não se esquivou, ao invés disso tentou penetrar fundo nos olhos do seu oponente. Era um homem inteligente, do tipo que arranca uma confissão sem tocar no colarinho do condenado. Desde de já lhe parecia desnecessário buscar a folha corrida do inspetor, ele respira honestidade por todos os poros – mas não custa nada fazer o dever de casa.

Inspetor: Afinal, o secretário vinha movendo um processo contra a empresa que o senhor representa juridicamente.

Essa informação foi suficiente para provocar uma fagulha de tremor no coração de Orlando. Afinal, sua ligação com Marinho & Santos era confidencial. Isso só poderia significar uma coisa, há um informante dentro do grupo. A constatação mudava por completo a cena e a sua atuação.

Inspetor: O senhor manteve algum contato com a vítima, algum encontro...
Orlando: Nós encontramos apenas uma vez...
Inspetor: Encontro amigável, suponho!

Orlando se levantou para fechar a porta da biblioteca, depois fechou as outras janelas. Voltou a sentar em sua cadeira, diante do investigador. Se isso fosse um jogo, se chamaria “desafiando o desafiador”.

Orlando: Não foi uma conversa amigável. E nós não discutimos negócios.
Inspetor: Três testemunhas presentes no bar, local em que a vítima foi vista pela última vez com vida, asseguram que o senhor sacou uma arma. Por quê?
Orlando: Imagino que o senhor deva conquistar muitas mulheres?
Assistente: Aí, chefe, o cara gamou!
Orlando: Pergunto isso porque tem um jeito muito doce de intimidar. Tive uma discussão particular e ela não foi a causa da morte.
Assistente: Diz aí, só pra gente: o ambientalista tava pegando a sua amante...
Inspetor: O senhor poderia, apenas para esclarecermos os fatos, dar o nome e o endereço da mulher que estava presente e, pelo visto, foi o motivo da discussão?
Orlando: Não. Sou um homem casado e não vou me expor dessa forma. Qualquer declaração, daqui em diante, só concedo em juízo.
Inspetor: Pois bem, como queira... Vamos embora, lamento ter interrompido seus afazeres. Boa tarde!

Da janela, Orlando acompanhava a partida dos oficiais. O assistente falava e gesticulava freneticamente, o inspetor anotava algo em sua caderneta. Eles entraram no carro e partiram. Não restava nenhuma dúvida: ou o escritório no qual tivera a reunião com os membros da construtora estava grampeado ou há, entre eles, um traidor.
Em meio ao silêncio em que caíra, seu celular soou como as trombetas do apocalipse. Olhou o identificador de chamadas. Era o detetive que contratara para uma missão particular. A última vez que o encontrara, o havia espancado, porque tentara enganá-lo por causa de uma dívida de jogo. Não havia pior hora para ligá-lo; no entanto, o trabalho para o qual foi contratado está acima de tudo.

Orlando: Alô... Espero que não esteja tentando me enganar outra vez!
Detetive: Eu a encontrei! Tenho certeza que encontrei a sua mãe.
(a seguir: só as mães são felizes).

sábado, 25 de julho de 2009

malditos - interlúdio





comunicado
o autor desse blog está desaparecido há semanas
suspeita-se que tenha sido sequestrado pelas forças ocultas
qualquer informação sobre seu paradeiro é válida

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Maldidos - Cap. XII

Porfiri Pietróvitch


Olá ouvintes da rádio KL9mil sintonizados no programa Mitos do Rock. Hoje contaremos a história do último poeta romântico do rock’n roll: Marc Bolan. Ele morreu em um trágico acidente de carro, quando ia ao encontro de sua mulher, que acabara de aceitá-lo de volta, depois de um ano de separação. E para começar, vamos ouvir “Buick Mackane”.

Buick, Buick, Buick Mackane
Will you
Buick Mackane, will you be my girl

Parafuso aumentou o volume do rádio no carro, talvez assim sua mente agitada se acalmasse. Finalmente chegara o dia de comparecer ao depósito da polícia federal, uma espera de pouco menos de 72 horas. Porém, enquanto aguardava ansioso, um fato novo surgiu, a confirmar uma velha máxima.
Rainy lady, Queen of the Rock
Will you help me roll
Help me roll to my soul

No desejo, um dia todos erram, erraram e errarão sempre. Pois o desejo confunde os sentidos. E alguns só aprendem com o erro. Em resumo, esse era o argumento que Parafuso recorria para tentar amolecer o duro coração de sua ex-esposa. Mas nos últimos meses, já exausto e desmotivado, vinha aceitando a separação como fato consumado e definitivo. Até ontem à noite, quando Mirela o procurou, menos ressentida, disposta à reconciliação.
Então, vejamos como o destino joga. No mesmo momento em que surge um prenúncio de paz, Parafuso dirige em direção à sua perdição. Por que aceitou participar dessa trama macabra se, desde o início, a achou arriscada e perigosa? Porque sua vida estava vazia. No final da tarde, era comum vê-lo fitando o nada, olhar tedioso e imóvel. A proposta de Orlando reacendeu a antiga chama, o ancestral apetite pela destruição. O dinheiro também foi estimulante.

Estacionou o carro em frente ao depósito. Faltavam cinco minutos para o horário combinado. Um imenso peso caiu sobre sua nuca. Uma poderosa corrente de adrenalina circulava pelo seu corpo. Depois, surgiram os tremores. Estava completamente tomado pelo sentimento de fuga: a vontade de voltar atrás, desfazer, viver em outro lugar diferente do presente. Ao caminhar para a entrada, evitava pensar na possibilidade de uma confissão, revia as alternativas, buscava respostas ideais para perguntas imaginárias. No meio de tudo isso, a imagem reconfortante de sua esposa e sua filha. Não podia tombar, não podia tremer. Abriu a porta com dificuldade.

Dentro do depósito, o inspetor Benedito Manso o aguardava. Seu assistente não entendia a estratégia do chefe. Para ele, era muito mais prático – e ortodoxo – intimar o suspeito. Para quê convocá-lo como “colaborador”? Talvez o investigador-chefe estivesse levando longe demais seu gosto pelo teatro. Nada disso, contudo, incomoda o mestre. Não é a confissão que interessa, mas o modo como se a obtém. É preciso sentir o cheiro da culpa, para depois fisgar o culpado.

Assistente: Nosso homem chegou.

O inspetor analisou Parafuso a cada passo, visivelmente vacilante, as mãos nos bolsos para controlar o nervosismo. Eles se cumprimentam.

Inspetor: É um profissional pontual. O senhor foi muito prestativo em aceitar o convite.

E como recusar sem que isso não significasse uma confissão prévia? Eis as sutilezas intelectuais do investigador.

Inspetor: Vamos lá ver a máquina.

Logo assim que viu o carro do ambientalista, Parafuso sentiu uma angustiante vontade de fugir. Por alguns segundos se imaginou voltando correndo para a entrada, os policiais atirando, ele saltando sobre o muro, ligando o carro, pegando a esposa e a filha, acelerando em alguma estrada perdida. Antes que fosse mais além em suas fantasias, Benedito Manso o segurou pelo braço. A esse gesto inofensivo, Parafuso reagiu com susto, fosse porque o despertasse do sonho, fosse porque anunciasse o futuro.

Inspetor: Veja em que estado ficou... Completamente destruído. Nossos técnicos estavam prestes a desmontar o motor, quando pensamos no senhor...

O inspetor virou para o assistente e pediu para chamar os técnicos.

Inspetor: São seus fãs! Será um grande aprendizado vê-lo trabalhar.

O carro estava localizado no centro do galpão, três holofotes iluminavam todo o interior do motor, nem uma mosca passaria desapercebida. Antes de iniciar sua análise, sete policiais cercaram o especialista.

Parafuso vasculhava o interior do veículo. Devido à tensão ou ao hábito, como este ato falho: abriu rapidamente a caixa de ferramentas e... retirou uma pequena lanterna! Essa cena provocou olhares risonhos entre os oficiais. Houve até um que falou baixinho: “Por que a gente não prende logo ele”. Era tudo uma farsa, menos o suor descendo pelo rosto do mecânico.

Inspetor: Nossos mecânicos trabalham com a idéia de que houve uma falha no sistema de freios... Mas também há a hipótese de ter havido um curto no sistema elétrico.

Ele ouviu essa explicação como um condenado à forca sentindo a corda cair sobre seus ombros. Nada mais lhe passava pela cabeça. Era óbvio que haviam descoberto a sabotagem no automóvel. Chegaram através de Diana. Ela foi a última pessoa a ser vista em público com o ambientalista. Provavelmente, estava sendo seguida.

Deveria ter comparecido com um advogado, mas como tinha sido convidado, chegar com um significaria confissão prévia. Estava tudo claro. Réu confesso antes da confissão. Armadilha muito bem armada.

Resignado, Parafuso corria as mãos sobre as peças familiares do motor, lembrava de sua infância. Na sua memória o sol brilhava em um momento na praia, quando tinha dezesseis anos e irradiava felicidade. Então, quando as luzes do passado se apagaram, seus olhos voltaram-se para a realidade, pousando, talvez aleatoriamente, sobre o eixo de direção, e notaram uma larga rachadura, envolta em...
Parafuso: FERRUGEM!
Tomado de alegria, Parafuso puxava os policiais pela gola, para mostrar sua descoberta. Um espectador alheio veria na animação do mecânico um comportamento típico dos especialistas, que ficam para lá de empolgados quando resolvem um problema insolúvel para os leigos. Como um professor orgulhoso, mostrava para os alunos os sinais de ferrugem e suas consequências...

Parafuso: Olhem, o pó tomou conta de toda essa área. O eixo de direção praticamente rachou por completo, por causa disso o motorista perdeu o controle – estava em uma curva?
O inspetor assistiu a cena surpreso e interrogativo. Como esses imbecis não perceberam isso? Há algum tempo seu assistente vinha desconfiando de dois agentes. Por outro lado, ver a demonstração de alívio do mecânico, confirmava todas as suspeitas. E ele tinha motivos para estar feliz. Afinal, quando prestar seu depoimento em juízo, alegará ao mal estado do veículo a causa do acidente. Não deixou de achar irônico o final: um ambientalista morreu ontem à noite, quem o matou? A Renault.

Parafuso estendeu as mãos triunfantes para se despedir do inspetor.

Parafuso: Creio que minha missão foi cumprida... Ou ainda há outras dúvidas?

Ele encarou o detetive com uma certa arrogância e desprezo mal disfarçados.
Inspetor: Pode ir! Como prevíamos, sua contribuição foi valiosa para a investigação. Gostaríamos apenas de arrolá-lo como depoente no encerramento do processo, portanto, qualquer viagem para fora da cidade, o senhor deverá nos comunicar.
Parafuso: Estou a inteiro dispor da justiça. Boa-tarde!

Enquanto Parafuso se dirigia saltitante para a saída, o assistente virou para seu superior.

Assistente: Ele deu sorte nessa, não?

O inspetor o ignorou, chamou o responsável pela perícia e o indagou:

Inspetor: É possível que essa rachadura tenha causado o acidente?
Perito: É uma possibilidade remota... Mas nesse caso, não haveria capotamento... Teremos que voltar ao local do acidente...

O investigador fechou o capô do carro, secou o suor do rosto e coçou a cabeça. Os outros policiais se retiram, deixando-o apenas com seu assistente.

Assistente: E agora, vamos intimar o peixe-grande, o tal Orlando?
Inspetor: Sim. Porém, ele é o filhote, o peixe-grande é o sogro.

(no próximo capítulo: Orlando, um homem de família).

domingo, 14 de junho de 2009

Malditos - Cap. XI

Mr. Crowley


A governanta perguntou outra vez para Elias:

Governanta: O senhor precisa se alimentar, desde ontem sentou nesse sofá e não fez outra coisa além de ver o vídeo do seu aniversário.

Ela se sentia responsável pelo seu bem-estar, preocupar-se com ele é uma função que exerce há tantos anos.
Governanta: Durma um pouco, dê um descanso para os olhos.
Elias: Preciso enxergar.

Elias sempre a ouviu, sua voz protetora o acalentou em vários momentos de tristeza. Mas o tempo da boa fortuna se foi. Agora é preciso aprender a ver melhor, ouvir melhor, viver melhor.

Governanta: Pelos menos, abaixe um pouco o som, já ouvi o suficiente os lamentos do sr. Robert Johnson.

Elias: Vá descansar. Não há mais nada que possa fazer.

Há dois dias e três noites, logo após o frustrado ritual, Elias não parou de ouvir as gravações do cantor do Mississipi, que vendera a alma ao demônio e morreu envenenado aos vinte e sete anos. É a trilha incidental para sua festa de aniversário projetada no plasma da tv.
No seu sétimo aniversário, duas coisas extraordinárias aconteceram, sendo uma delas capital para o futuro de Elias. O primeiro evento o aterrorizou. Um dos garçons, que também trabalhava como coveiro, sofreu um colapso nervoso. Sem nenhuma explicação, começou a quebrar os copos e garrafas. As mães assustadas vendavam os olhos ou tampavam ouvidos dos filhos. Os empregados não conseguiam acalmar o louco, que descalço andava sobre cacos de vidro, gritando as seguintes palavras: “eu sou um instrumento... um instrumento do poder... o poder conjurado... Aqui! Na sua presença”. E apontava para o convidado especial. Ele – o Maestro.

A presença do Grão-Mestre da Ordem era significativa do prestígio da família, porém, Ele não se encontrava lá devido a honrarias fúteis. Não tinha tempo para isso. O pai do aniversariante havia solicitado uma visita, queria que o Maestro avaliasse o talento do filho para a música.

A criança foi conduzida a outra sala, longe dos convidados. Seu pai:

Pai: Filho, este é o grande mestre. Ele está aqui para ouvi-lo, toque para nós.

O filho, percebendo a importância da audiência e não querendo decepcionar o pai, tocou da melhor forma que sabia.

O Maestro ouviu com atenção.

Maestro: Bom... Continue... Continue.

O rosto do Maestro não se assemelhava a nada. Todos nós repetimos alguns padrões faciais, semelhanças físicas. E sua voz, uma melodia estranha, sinuosa, exalava um hálito gelado.
Enquanto tocava, o mestre segurou sua mão esquerda, começou a lhe ensinar novos acordes e escalas. Depois a largou, o menino improvisava empolgado. Subitamente, Ele começou a cantar estas letras:

If I had possession
over judgment day
If I had possession over judgment day
Lord, the little woman I'm lovin' wouldn't
have no right to pray

Hoje, o homem maduro procura no menino as pistas para o desengano que tem sido o seu destino.
A governanta volta a sala, e dessa vez não é recebida com a cordialidade de antes.

Elias: O que foi agora? Já não lhe disse que não preciso de nada!
Governanta: Senhor, a jovem Ana está na portaria insistindo para vê-lo. Não seria uma má idéia atendê-la...
Elias: Hum! Está bem. Vou recebê-la.

Enquanto Ana era recepcionada, Elias caminhou até o bar, abriu o uísque, encheu o copo até o meio, jogou duas pedras de gelos e fez o som da cascavel.
A governanta notou algo diferente em Ana, porém não sabia precisar o exatamente o que era, talvez fosse a ausência do gato.
Ana: Olá!

Elias percebeu logo um brilho novo em seu olhar. Talvez fosse o jeans e a camiseta, pois antes a vira com uma vestimenta mais marcante. O cabelo longo foi raspado. Era outra aparência.
Elias: Não esperava visitas...
Ana: Eu sei. Estou há dois tentando falar com você.

Elias voltou os olhos para a governanta, que em um gesto maternal os deixou a sós. Finalmente dormiria descansada.
Elias: E qual é o motivo da sua insistência em falar comigo?
Ana: Eu rompi com a Ordem.
Elias: O quê?
Ana: Acho que você deveria fazer o mesmo!
Elias: Você está louca! Tenho vínculos ancestrais...
Ana: Estava sendo preparada para ser alta-sacerdotisa, não há vínculo maior e mais ancestral que esse.

A firmeza na expressão o confundia. O que ela dizia traduzia uma série de pensamentos perturbadores e inexplicáveis para ele. Idéias desconexas e covardes.

Elias: Por que está me dizendo isso?
Ana: A Ordem não pode te dar mais nada além de sofrimento.
Elias: A vida é sofrimento.
Ana: Não! A vida é iluminação. Você está nas sombras...
Elias: Por favor, vá embora!
Ana: Você deve sentir o que estou te dizendo... Eu vim aqui para te pedir para se juntar a mim, juntos podemos trilhar um outro caminho.
Elias: Como eu poderia romper com Ordem?
Ana: Abdicando de tudo o que conquistou.

Elias olhou em volta do seu apartamento, o disco de ouro no centro da sala, a festa do seu aniversário no projetor, seus familiares e o garçom...

Ana: Deve estar confuso, é natural... Aqui está meu telefone, se quiser vir comigo...

Sem dizer mais nada, ela lhe deu um beijo no rosto e partiu. Elias desligou o som, o aparelho de dvd. Tragado pelo silêncio, refletia sobre cada palavra que ouvira, imaginando suas conseqüências. “Talvez a morte fosse a melhor solução?”.
(a seguir: Parafuso enquadrado)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

malditos - Cap. X

Perdas e danos


Em busca do poder, Orlando trabalha para ser aceito por uma poderosa Ordem, porém terá que provar seu valor. Na sua jornada, envolveu um amigo e um amor do passado em um assassinato. Para ele, seu plano foi perfeito. Agora há um inspetor investigando seu comparsa, Parafuso, que acabou de entrar ofegante no escritório de Orlando. Esse não é o mundo da literatura realista dos anos 2000. Este é o mundo de malditos.
Parafuso: Preciso te contar como foram as minhas últimas quatro horas. No final, espero que entenda a situação em que me colocou e o preço que isso vai te custar.

Orlando ouviu o mito da cambaxirra e todos os blábláblás. Supersticioso demais. Quando mencionou o nome de Diana, se sobressaltou, ouviu atentamente cada palavra, pediu para repetir partes, confirmou impressões. Parafuso só não contou sobre a desconfiança dela. Isso era “segredinho de casal”. Por que ela o procurara? Aquela mulher usa um repertório infinito de recursos para obter qualquer coisa de um homem. Ainda mais um apaixonado. Portanto, o que estava acontecendo no escritório de Orlando não era bem uma conversa, mas um jogo de gato e rato.
Parafuso: E vamos ao pior, ao superlativo. Depois que Diana saiu, um inspetor da polícia federal apareceu, adivinha para quê?
Orlando: Algo relacionado ao acidente? Ou às suas atividades “extracurriculares”?
Parafuso: Você está tirando onda com a minha cara, mas vai comer aqui... Na palma da minha mão.
Orlando: Vai confessar sua participação na sabotagem de um carro, resultando em um acidente fatal?
Parafuso: Se essa for a última saída, sim! E não me venha falar em amizade, porque a jogou no lixo.
Orlando: Você foi intimado?
Parafuso: Fui convocado a “colaborar”. Quer saber como?

Enquanto Parafuso explicava o convite para comparecer ao depósito da polícia federal, daqui a dois dias, para analisar o carro sabotado, a mente ágil de Orlando procurava, entre uma lista de rostos, um no departamento de investigação. Teria de ser alguém com teto de vidro, que não pudesse chantageá-lo no futuro.

Orlando: Você presta serviço para muitos policiais, talvez tenha sido uma coincidência.
Parafuso: Por acaso existe acaso?
Orlando: É...
Parafuso: Eu quero duas coisas de você: proteção e dinheiro.
Orlando: Sabe que sou um cara muito precavido...
Parafuso: Não tem parecido!
Orlando: Mas sou! Em todo plano, algo sai fora do previsto, porque não há como prever. Quando elaboro alguma coisa, começo pelo pior, e trato de evitá-lo desde o início, arranco a vitória das garras da derrota. Estou ciente sobre os seus gastos com a ex-esposa, a pensão para os filhos, entendo porque age dessa forma.
Parafuso: Esse inspetor reabriu a investigação sobre acidente do ambientalista, até o fim desse caso, eu quero sete mil reais em dinheiro, por mês, aqui na sua sala, a partir da data de hoje. E não estou agindo assim por mesquinhez, mas por profissionalismo, já que ser investigado pela polícia federal não estava no nosso contrato.
Orlando: Está certo, certíssimo! Só espero que essa seja a última condição para sua “colaboração”. Caso contrário, vou passar a chamá-lo de prego.

Depois disso, reinou o silêncio e um clima de animosidade. Ofensas implícitas foram trocadas, uma antiga amizade ganhou rachaduras em sua base, não houve abraços ou cumprimentos gentis na despedida.
Olhando as pilhas de papéis sobre sua mesa, Orlando imaginou uma cidade medieval. A torre mais alta – os processos relacionados a Ordem – o castelo. As pequenas pilhas – os processos conjugais e afetivos – as humildes casas de seus moradores. Em sua cidade não existia prisão. A cabeça doía. Tomou dois analgésicos junto com uma enorme xícara de café. Notou algo novo em seu organismo: mesmo vivendo uma situação de tensão, não sentiu vontade de fumar. Olhou para o relógio, consultou sua agenda, riscou todos os compromissos. Pegou as chaves do carro decido a encontrar Diana imediatamente.
No caminho, Orlando sentiu remorso. Muito remorso remexido com medo. Diante do Destino e seu jogo misterioso, é muito difícil não tremer. Era comum, na Idade Média, pintar os seres humanos como fantoches do Destino. Enquanto dirigia, sentiu vontade de voltar ao tempo, desfazer, escolher outro caminho conduzindo à liberdade. Ao invés disso, vivia um momento de arrependimento, o primeiro sinal de fraqueza humana. Então, projetou duas realidades possíveis: uma na qual está comemorando sua consagração; outra que não conseguia imaginar. Essa capacidade de projetar sempre a vitória chamou atenção da Ordem para sua vocação. Nós chamamos isso de otimismo, eles chamam de positivismo. E nós podemos aprender muito da essência do positivismo observando o movimento de Orlando diante das conseqüências dos seus atos: um primitivo em fuga sentindo o bafo do mamute na sua nuca.
Diana cuidava dos pés de rosa no seu jardim. Sua empregada a auxiliava. Junto com elas um bebê no seu carrinho protegido do sol. Uma estranha planta estava se alastrando, como uma espécie de trepadeira, se alojando no tronco e caules de outras plantas.
Diana: Nunca vi... Você conhece?
Empregada: Conheço não senhora!
Diana: A roseira está seca... Essa planta é uma parasita!
Empregada: Tem alguém chegando.
O barulho do motor do Mercedes de Orlando assustou a todos, principalmente o bebê, que começou a chorar. Ele saiu do carro como um raio, em segundos já estava diante de Diana, que ainda segurava nas mãos a estranha planta.

Orlando: Olá... A gente precisa conversar

Ele olhou surpreso para o bebê no colo da empregada, que o fazia parar de chorar.

Diana: É a filha da minha empregada. Você a assustou. Vamos conversar no salão.

Era impressionante o modo como Diana transformou um sítio abandonado em um lugar de calma e paz. Olhando para variedade colorida de flores, roseiras, pés de goiaba, o som doce do riacho que corre além bosque, Orlando pensava: “É. O senador foi generoso”. Mas é sempre bom desconfiar da generosidade de um sovina. O sítio caiu nas mãos do senador. O casarão pertenceu inicialmente a um grande comerciante do século XIX, segundo as más línguas, traficante de escravos, enfim... O imóvel foi passando de geração a geração até que o perderam em uma mesa de pôquer. O senador fez algumas melhorias no início, mas logo desistiu do lugar. Ele tentou vendê-lo, poucos demonstram interesse devido ao modo como fora adquirido. Como o imóvel não constava em sua declaração de bens, e a oposição mordia seus calcanhares, o político começou a considerá-lo um elefante branco. No final das contas, o sítio foi útil para agraciar uma bela dama com um presente a altura.
Ao chegar ao salão, Orlando não se conteve mais.
Orlando: Você acha que eu matei o ambientalista?
Diana: Parece que já admitiu isso para si mesmo.
Orlando: Quem matou aquele homem foi você!
Diana não se conteve, com os olhos lacrimejando e as palavras cheias de raiva.
Diana: FILHO-DA-PUTA!

Orlando se levantou com mais raiva e a esbofeteou. Ela caiu sobre o sofá chorando. Diante do ato impensado, ele se jogou aos seus pés.

Orlando: Por favor, confie em mim...

Ela o afastou, enxugou as lágrimas, respirou fundo.
Diana: Você mudou muito...
Orlando: Preste atenção: foi um acidente.
Diana: Tramado por você. Eu vi o Parafuso...
Orlando: Quer saber o que eu planejei: você entregaria o pó para ele, quando estivesse voltando, o carro ia quebrar, eu o seguiria, chamaria um agente nosso da civil, o ambientalista seria revistado, preso por porte de droga, acabou.
Diana: Não sente culpa?
Orlando: Não! Eu não o matei. Foi ele que se matou! Com a sua ajuda. Por que deu conversa para ele? Por que não entregou a encomenda e saiu como o combinado?
Diana: Queria saber porque ele havia virado seu inimigo.
Orlando: Veja bem: ele se matou. Vamos voltar a cena. Eu lhe apontei uma arma, tirei você dos braços dele, o que fez? Poderia ter voltado ao bar, o mais sensato, chamado os seus amigos, a polícia e o escambau... Mas o que ele fez? Entrou no carro para dar mais uma cheirada... E depois saiu como um louco pela estrada. Não demonstrou nenhum apreço pela vida.
Diana: Que pessoa estranha você está engendrando dentro de si.

Orlando nada respondeu, apenas olhou além do horizonte, com uma única convicção: é impossível voltar atrás, e o que está traçado, deverá ser cumprido.
(a seguir: Welcome Mr. Robert Johnson)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

malditos - Cap. IX

Todos têm um segredo, menos Lennon e seu macaco

Sentado com os pés sobre a mesa, Parafuso abria o jornal do dia, quando uma cambaxirra voou através da janela e pousou sobre uma viga de madeira no lugar mais alto da sala.
Parafuso: Maldição.

O mecânico levantou rápido, enrolou o jornal em forma de cone e, aos pulos, tentou espantar o pássaro agourento. Seu pai lhe ensinou que o canto da cambaxirra trazia azar. Parafuso correu até a janela, após afastá-la, para se certificar se estava longe dos seus domínios. Depois olhou para baixo, para fiscalizar o trabalho dos seus empregados. Um deles trabalhava na suspensão de um Renault, quando uma garota de minissaia passou pela calçada. Ele fez uma gracinha, ela fez um sinal obsceno, os outros mecânicos riram, o estepe se desencaixou e o carro desceu pela calçada assustando os passantes.

Parafuso: Puta-que-pariu!

O chefe jogou o jornal de lado e furioso desceu as escadas. O hilário acidente impediu que ele lesse a seguinte notícia: Associação de pescadores não aceita a hipótese de acidente.

Parafuso: Porra, ninguém trabalha direito!
Empregado: Pô, chefe, não sei o que aconteceu...
Parafuso: Você não calçou as rodas traseiras... Que burrice!... Quase matou aquela velhinha do coração! Como está o carro?

Enquanto checava o veículo, os outros empregados tiravam sarro com o colega burro: “Foi gastar a cocata” “É muito otário!”. “A garota derrubou o macaco com a força do pensamento!” “É a Jean Grey!”. “Ooolha issooo!” Parafuso voltou sua atenção para a origem do espanto dos empregados.

Parafuso: Que surpresa!
Diana: Queria conversar com você.
Parafuso: Vamos para o meu escritório.

Diana detestou o ambiente. Era difícil andar entre as caixas com peças, as pilhas de bateria, o arquivo com as gavetas abertas.

Parafuso: Desculpe a bagunça... Pronto! Sente aqui... Então, aconteceu alguma coisa?

Antes de responder, ela procurou nos olhos do mecânico o antigo e reprimido sentimento. Parafuso a achou mais bonita do que antes, quando a conheceu, como namorada do seu melhor amigo.
Diana: Leandro... Estou preocupada. Acho que Orlando me envolveu em uma situação perigosa. Por isso vim aqui, você sabe em que estamos envolvidos?
Parafuso: Como?
Diana: Por favor, diga pelos menos algo que me tranqüilize.
Parafuso: Não estou te entendo...
Diana: Eu te vi, naquela noite, entrando no carro do ambientalista, saindo, e depois voltando... Te vi entrando e saindo do bar...

Ainda fingindo, Parafuso voltou à cena do crime, tentando imaginar em qual lugar ela poderia ter se escondido?

Diana: Você ficou bastante tempo do outro lado da rua, meio nas sombras, antes do bar abrir. Tinha um carro na frente da árvore, lembra? Você até fumou um cigarro encostado nele. Eu estava lá dentro, deitada no banco de trás, coberta com uma manta negra, protegida pelo vidro escuro.
Parafuso: Ali era realmente o melhor ponto de observação.
Diana: Leandro, em que estamos metidos?
Parafuso: Não estou envolvido em nada.
Diana: ESTÁ SIM! Você participou de um assassinato.
Parafuso: Fale baixo, pelo amor de Deus! Não diga essa palavra! Eu não sei, juro! Mas vou procurar saber. Agora fique calma. Quer uma bebida?
Diana: Uma água... Se houver algum copo limpo.

Enquanto Diana se acalmava bebendo água gelada direto da boca da garrafa, um estranho senhor chegou à oficina. Ele se vestia de modo antigado, usava um lenço para secar o suor do rosto, tinha uma barba grisalha bem cuidada, bochechas levemente rosadas e um olhar bonachão. O tipo se dirigiu a um dos empregados. Este gritou para alto.

Empregado: Chefe, tem um cliente aqui embaixo...

Parafuso se encheu de raiva depois de ouvir o grito estridente, pois interrompeu um raro momento de privacidade e cumplicidade com a desejada mulher.

Diana: Vou indo...
Parafuso:
Deixa o número do seu telefone... Caso eu descubra algo novo.
Diana: 6016-3306.
Parafuso: Vou te acompanhar.

Ao passar pela porta, Parafuso adotou a convenção do cavalheiro: “primeiro as damas”. Diana aceitou e desceu a escada com um sorrisinho satisfeito, enquanto ele olhava para sua bunda. O cliente os esperava no último degrau da escada. Parafuso o encarou com implícita antipatia.

Parafuso: Só um minuto, vou levá-la até o carro.

Antes de abrir a porta, Diana se despediu do velho amigo, deslizando a mão pelo rosto dele, o olhou com ternura e lhe deu um beijo no canto dos lábios.

Diana: Vamos voltar a ser amigos... Precisamos confiar um no outro, porque não confio mais no Orlando.
Parafuso: Não se preocupe. Eu juro.

O cliente os observava curioso como um biólogo ao descobrir uma nova espécie. Parafuso se aproximou:
Parafuso: Pois não, em que posso lhe ser útil?

O senhor ensaiou um clima amistoso. Observando os empregados, os vários carros na oficina, simpático brincou:

Cliente: Vejo que a crise internacional não chegou ao seu terreno.
Parafuso: Que crise? Não há crise nenhuma. Os donos dos jornais - esses sim! – ganham dinheiro com essa crise.

Parafuso parou no início da escada, encostou o braço sobre o corrimão, fitou sério o cliente, jamais o levaria para o seu escritório. Qualquer negócio resolveria ali mesmo, no meio da graxa.
Cliente: Eu o procurei em busca de uma opinião técnica, afinal o senhor é “o melhor mecânico da cidade”. A fama precede o homem.

Parafuso o ouvia com visível impaciência: “Eis aqui um sujeitinho cheio de rodeios!”.

Cliente: Oh, perdão, ainda não me apresentei. Meu nome é Benedito Ramos Soares Manso, sou Inspetor da Polícia Federal, fui convocando para retomar as investigações sobre o acidente que vitimou um funcionário da prefeitura, parece que algumas evidências ainda estão nebulosas.

A cada palavra o coração de Parafuso batia mais forte, ao final da apresentação, seus batimentos estavam mais rápidos do que o piscar dos seus olhos.

Parafuso: Podemos conversar no meu escritório. Acho mais apropriado.
O mecânico voltou a subir as escadas, tentava controlar o nervosismo, mas só em imaginar (e não conseguia pensar em outra coisa) que, talvez, o inspetor já estivesse na oficina quando Diana falou aquela palavra... Esse pensamento o fazia suar frio.

Parafuso: Por favor, sente-se.
Inspetor: O senhor está com frio? Parece que está tremendo...
Parafuso: Não! Ah, sim... Uma pequena infecção na garganta... Estou tomando um antibiótico... Eu ainda não tomei o comprimido... Muito trabalho... Só vou pegar o comprimido... Aqui está!... Uma água, uma água... Pronto!... Pois bem...
Inspetor: Não coloque o trabalhe acima de sua saúde. Não vou tomar mais o seu tempo. O senhor poderia prestar uma colaboração à investigação, analisando o carro da vítima, seu talento é uma unanimidade, por isso será de grande valor uma opinião eminente e definitiva... Poderíamos agendar um dia?
Parafuso: Sim... Estou ao seu inteiro dispor.
O inspetor anotou o dia e o horário, mas seus olhos não estavam na agenda. Parafuso, em curtos intervalos, coçou várias vezes a cabeça. Isso era digno de nota. Por fim, o agente, sempre simpático, se despediu com um forte aperto de mão. O mecânico ficou alguns minutos sentado, enquanto o oficial descia. Tão logo se certificou da partida, correu para a porta e a fechou aflito.

Parafuso andava de um lado para outro, derrubando caixas, espalhando peças pelo chão, buscava organizar os pensamentos, enfim, lutava contra o medo. Profundamente supersticioso, procurava respostas através de sinais. Estranha coincidência. Diana e a polícia aparecem no mesmo dia e na mesma hora. Será que a seguiram? Sim! Claro! Eles já sabem tudo. Eles não sabem nada. Não há nada. Não há impressões digitais. Ninguém o viu? Ela. Não! Todos a viram com o ambientalista no bar. Orlando... Orlando!

O mecânico pegou as chaves do carro, desceu correndo os degraus, chamou seu empregado de confiança:

Parafuso: Ó Camundongo... Vem cá! Dá uma lubrificada no meu rifle Rossi e o deixe em cima da mesa no meu escritório... Depois feche a oficina, vou demorar.

Parafuso saiu acelerando o Maverick preto. No primeiro sinal vermelho, colocou uma música para se acalmar – Evil woman, Black Sabbath. Pisava fundo.

Parafuso: Maldita cambaxirra!
(no próximo capítulo: causa e conseqüência).