domingo, 30 de maio de 2010

Malditos - Cap. XXI

Pele de Asno às avessas

Depois aturar as explicações do ginecologista, seus termos técnicos e o olhar comiserador, Eva exigiu uma resposta definitiva.

O médico fechou a pasta. Entre o agendamento e a consulta, ela demorou nove meses para aparecer no consultório. Já não sabia se estava diante de uma neurótica compulsiva ou de uma maníaca depressiva. Quem o indicou? Provavelmente algum inimigo oculto.

Dr. Gianne: A maternidade não se resume ao parto...
Eva: Só me responda sim ou não: tenho condições de engravidar?
Dr. Gianne: A maternidade é um estado de espírito, independe das condições fisiológicas...

Eva o interrompeu com um soco sobre a mesa. “Sim ou não”.

Dr. Gianne: Por favor, se acalme... Seus ovários...
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Você já fez uma operação de aborto?
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Por favor, calma! Vou ser franco, já fiz abortos, por vários motivos, até o primeiro mês de gestação, os riscos para a mulher são mínimos...
Eva: Por quê?
Dr. Gianne: Depois do sétimo mês...

Ela não queria ouvir mais nada. Saiu da sala às cegas, derrubando a secretária que tentou contê-la.

“Por quê?”

Andava perdida pelas ruas, esbarrando nas pessoas, nos mostruários dos camelôs, falando sozinha.

“Por quê?”

Queria ouvir uma resposta, nem precisava acreditar no interlocutor, por isso parou diante da Igreja de N. S. de Fátima. As portas fechadas. Ela contornou até a entrada dos fundos. Ouviu as vozes de dois homens discutindo: o padre e o seminarista. A discussão começou por causa da posição dos castiçais sobre a mesa na cerimônia da noite, um queria à esquerda, outro à direita. O bate boca já avançava para o campo pessoal quando, surpresos, se calaram diante da estranha.

Padre: Precisa de alguma ajuda?
Eva: Quero me confessar.

O padre e o pupilo se entreolharam rapidamente. Seria mais uma viciada em crise? Pelas roupas, o seminarista concluiu que não. Pela aparência desolada, o padre conclui que sim. “Pobre menina rica”.

Padre: Vamos conversar ali, no jardim...

Era jovem, talvez tivessem a mesma idade. Sentaram no banco de madeira, sob a sombra de uma mangueira.

Padre: Qual seu nome?

“Eva”. O sacerdote não conseguiu disfarçar o espanto. Rapidamente voltou ao jeito benevolente. Pegou-a pelas mãos, olhar caridoso, voz piedosa:

Padre: Parece angustiada...
Eva: É assim que recebe as visitas inesperadas?
Padre: Vejo tristeza em seu olhar...

Nesse instante, Eva voltou a si, suspirou fundo, pensou em levantar e ir para casa. Por outro lado, não havia melhor lugar para estar. Abriu a bolsa, retirou um maço de cigarros. Há nove meses o maço estava em sua bolsa, só o fumaria se chegasse a essa situação, mas já sabia desde o princípio que chegaria, por isso comprou o Marlboro. Acendeu, soprou, olhou com arrogância para o padre.

Eva: Posso lhe contar uma história sobre uma garota?
Padre: Quem ela é?
Eva: Essa garota sou eu. Essa garota morreu hoje. Foi assassinada. Na verdade, já estava morta. Mas seu fantasma vagava por aí, me aterrorizando. Estou aqui para entregar o corpo àqueles que a mataram...
Padre: Não posso ajudá-lo se não entendo o que diz.
Eva: Nunca entenderá. Mas vou lhe dar uma chance. A história começa no velório de minha mãe, quando tinha sete anos. Meu pai ficou muito triste. Ele a amava demais! Ficamos sós, mas para mim foram os melhores anos de minha vida. Eu adoro meu pai. Porém, conforme fui crescendo, ele começou a se afastar de mim. Diziam que eu parecia demais com a minha mãe. Ele viajou e me deixou com meus tios. Quis meu pai de volta. Quando voltou, eu tinha dezesseis, e o enfeiticei.
Padre: Está me dizendo que...
Eva: Sabe o que estou dizendo, ou por acaso o celibato também interferiu no seu raciocínio! Eu quis. Foi uma única vez, a primeira. Minha família não vive sob os seus dogmas. Somos o que chamam de malditos. Hereges. Muitos dos meus antepassados morreram por causa de sua intolerância. Aliás, acho que me batizaram com esse nome apenas por provocação. Mas não! Tenho esse nome para poder viver disfarçada na sociedade brutal que ajudaram a criar. Por isso, quando o fruto nasceu em meu ventre, aceitei beber todas aquelas ervas para expurgá-lo... Eu perdi meus ovários. Agora, entende?

O sacerdote a segurou firme pelo braço, como se estivesse sendo presa.

Padre: Temos de levar seu pai à justiça...

Ela se libertou e, furiosa, desferiu um nocaute no rosto do padre.

Eva: Hipócrita! Leve os seus pedófilos à justiça!

E cuspiu.

O seminarista correu para contê-la e levou um chute nas bolas.

Eva chegou à rua, parou um táxi, entrou e disse ao taxista

Eva: Vamos até ao bairro Floresta das Serras... E não me pergunte nada até lá!
Era o endereço da casa de seu primo, Elias.

(a seguir: Seu paraíso, o meu infermo).