sábado, 19 de junho de 2010

malditos - Cap. XXII

Gérard de Nerval


Ao longe, a música: tambores rufando, mãos ancestrais, o movimento dos astros, o vento atravessando as areias. Algum poeta jurou ouvir o bater de asas, anjos ou demônios, mas estava delirando, pois este não é o reino do deleite, este é o reino da Ordem. E aqui, o que é selado...

Eva: Não pode ser negado.

Pactos não podem ser quebrados.

Elias: O pacto é um contrato... Nada mais do que isso. È um contrato social, de ordem comercial. Por exemplo: um fazendeiro roga à divindade, pedindo a multiplicação dos seus gados, para isso oferece em sacrifício um boi da sua minguada criação, e o que recebe em troca? Uma boiada.
Eva: Por favor, não me venha com suas novas idéias marxistas!
Elias: Você não percebe? Nós negociamos com as divindades, digamos, nós dançamos para elas, mas no final das contas, não as usamos para atingir nossos objetivos humanos. Um boi para uma boiada. Isso não é Marx.
Eva: Eu sei!
Elias: Livre arbítrio, minha prima.
Eva: Já se perguntou por que tem o nome de um profeta?
Elias: O quê?
Eva: Será que suas idéias avançadas o deixaram surdo?
Elias: Não! Nunca me perguntei. Isso nunca foi uma questão para mim.
Eva: Logo você, tão esclarecido, ignora a primeira lei de Sócrates. Se nunca se questionou sobre a origem do seu nome, também nunca questionou sobre quem é você, logo jamais há de aceitar sua vida como é.

Eva se escondeu na casa do primo. Chegara aflita e desesperada. Elias a abraçou com o carinho de um irmão protetor. À noite, os dois conversaram longamente, passaram a vida a limpo, se perguntaram assustados: será que estavam pagando alto demais por velhos contratos? A vida cobrando mais do que o devido?

Como ela o havia procurado antes do pai e, principalmente, do marido, Elias acordou confiante e disposto a trazê-la definitivamente para o seu lado. Antes dela acordar, ele já a esperava com o café da manhã pronto sobre a mesa. Iria convencê-la a desistir da Cerimônia de consagração. E usaria todas as artimanhas para isso.

Elias: Nossa conversa ontem à noite, nossas lágrimas, valeram para alguma coisa?
Eva: Estava nervosa... Foi um desabafo.
Elias: Você não irá conseguir. Está cheia de culpa. Nós dois estamos cheios de culpa. Foi para isso todo o nosso sacrifício, para vivermos com culpa?
Eva: Não me tome pelos seus atos. Você se afastou demais dos valores da nossa família. Está perdido.

Elias levantou, foi até o bar, uísque sem gelo, voltou batendo o copo sobre a mesa.
Elias: Eu não quero para você o que eu tenho. Uma vida de sofrimento. E ontem você sentiu uma pontinha do espeto, e me procurou chorando, com medo.

Antes que Eva respondesse, uma voz familiar surgiu do fundo da cozinha: “Você deveria ler mais a Bíblia, Elias”. Ao reconhecê-la, o anfitrião engoliu o uísque, e rosnando:

Elias: O que veio fazer aqui?
Orlando: Vim buscar a minha mulher.

Orlando atravessou a cozinha, levantou Eva da cadeira, e cochichou.

Orlando: Vamos embora, chega dessa palhaçada.

Eva olhou para o marido com um misto de prazer e temor. Elias percebeu, por isso, quando ela lhe dirigiu o olhar:

Elias: Prima, por favor, fique aqui... Não se submeta...

Orlando mal conseguiu ouvir:

Orlando: Você é um fraco! Um traidor!

Eva o empurrou:

Eva: Não diga isso! Você não tem...

A raiva o cegou. Nem ouvia o que Eva dizia, em sua mente só havia uma coisa: a lembrança de dois meses atrás, em sua casa, quando ela dissera: “Você tem inveja do meu primo”. Isso era demais! Julgá-lo tão mesquinho e inferior.

Orlando: Seu primo traiu a sua família. Tem um carro da polícia parado vinte e quatro horas debaixo da sua cobertura...
Elias: Você é um mentiroso.

Ambos se olharam com raiva. Foi um longo instante de tensão. Eva tremia, mas ao mesmo tempo - por favor, me explique -, sentia um frio de excitação correndo pela espinha. Os dois pareciam velhos pistoleiros do oeste: olhares silenciosos, músculos tensos, a cabeça confusa.

Orlando: Tenho certeza que tem uma escuta aqui!

E Orlando começou a quebrar coisas, arrancar gavetas, virar mesas. Eva gritava. Nervoso, Elias correu até a escrivaninha na sala contígua, abriu a gaveta e pegou a beretta. Conferiu o pente cheio. Voltou à cozinha, encontrou Orlando prestes a quebrar mais um vaso valioso. Mirou na testa. O vaso estalou no chão. Elias desviou os olhos da mira para os cacos.

Orlando: Está vendo? Sabe o que é esse brinquedinho aqui na minha mão? Uma escuta. Você já deve ter cantado todo o seu repertório.

Uma corrente elétrica correu pela espinha de Elias até estraçalhar sua mente. A vontade de estourar a cabeça do filho-da-puta não era suficiente para animar seus músculos paralisados. Ele precisou segurar o minúsculo microfone para acreditar. Girou várias vezes a peça entre os dedos. A cada volta imaginava quem poderia tê-lo instalado. Mas ter sido iludido por alguém de confiança ainda doía menos. Batia fundo em seu peito o fato de Orlando revelá-lo, aos olhos de sua prima, como um idiota. Ele não ouviu o assistente do inspetor, do outro lado da rua: “Putz, fudeu!”

Orlando: Há bastante tempo, seu pai tem sendo investigado pela polícia federal...
Eva: Por quê?
Orlando: Política.
Eva: Meu primo não é um traidor! Eu vi a expressão dele. Não sabia dessa escuta. Mas você sabia...

Apertou forte o braço da esposa.

Orlando: Seu primo está namorando a sobrinha do Inspetor-chefe encarregado pela investigação. Ele te disse?
Eva: Não.
Orlando: Ele mudou de lado. Vocês conversaram a noite inteira, ainda resta dúvida? Ou os afetos familiares atrapalham sua percepção?

Eva lançou o olhar, sobre os ombros do marido, até seu primo. Ele a encarou com lágrimas secas no rosto, ombros caídos, uma arma inerte na mão. Ainda tentou suplicar: “fique!”.

Eva: Vamos embora.

Ela se adiantou até a saída. Orlando, ao passar por Elias, soprou suas palavras finais:

Orlando: Aproveite a arma e ponha um fim ao seu sofrimento.


(a seguir: a cerimônia começa)