sábado, 11 de abril de 2009

malditos- cap. VII

Homens ocos

Elias correu os olhos sobre os livros na estante. Retirou um exemplar das poesias reunidas de T.S. Eliot. Abriu uma página a esmo e leu: “Nós somos os homens ocos, os homens empalhados, uns nos outros amparados, o elmo cheio de nada. Forma sem forma, sombra sem cor, força paralisada, gesto sem vigor”.

Eva: Meu primo, que surpresa! Na minha casa, ainda mais as dez da manhã!

O abraço quente de sua prima, o doce toque de seus lábios no canto de sua boca, as mãos delicadas descendo pelo seu peito, fragmentos fugazmente eternos.

Elias: Vim de surpresa, pois tenho um assunto urgente a tratar com seu marido.
Eva: Infelizmente, ele recebeu um telefonema misterioso, saiu... Disse que passará o dia inteiro fora.

Sobre a escrivaninha havia um retrato de Eva e Orlando, tirado no dia do casamento. Elias o analisou atentamente. A postura rígida, a ausência de um sorriso no rosto, era um homem oco.

Elias: Por que Orlando não quer a minha presença em sua consagração?
Eva: O quê?

Uma corrente elétrica e raivosa correu pela espinha de Eva. O fato de Orlando fazer algo sem consultá-la, ainda mais envolvendo um evento tão importante, foi suficiente para resgatar velhas dívidas, e levantar novas desconfianças. Ela sentou, respirou fundo, se recompôs da surpresa.

Elias: Ele não te contou! Procurou o seu pai para tentar me convencer... Seu casamento foi um erro.
Eva: Primo, em nome de todo nosso afeto, por mim... Compreenda o Orlando.
Elias: Você poderia ter se casado com alguém da nossa linhagem.
Eva: São novos tempos. Nós somos frutos das eras. Você é especial...
Elias: Aceitaria casar comigo?
Eva: Veja nossos primos: vivem à sombra do pai. São preguiçosos, acomodados, fracos. Estão preparados para esse tempo? Não. Alguns estão endividados.
Elias: Olho para aquela foto ali, sabe o que vejo: um mercenário. Ele não tem nobreza de espírito.
Eva: Tem ambição. É obstinado, inteligente, leal. Vai nos levar mais longe. Por isso, casei com ele.
Elias: Se quer viver como Lady Macbeth, o problema é seu... Mas seu enredo não está sendo escrito por Shakespeare.
E finalmente perceberam a silenciosa presença dela, na porta de entrada do escritório. A menina. Elias voltou os olhos atentos para os cabelos dela, longos e crespos. Eva a encarou de modo recriminador. A criança tremendo fala:

Menina: Posso ver desenho?

Como quem afasta um cachorro vira-lata, Eva diz: “Vai”. Ela sai correndo pelo corredor. Essa cena tocou em algum lugar adormecido na mente de Elias. Um lugar inóspito.

Eva: Foi bom ter vindo. Queria mesmo conversar com você, afinal há quanto tempo...
Elias: Trabalhei demais nos últimos dois anos. Sabe como é: “abelha atarefada não tem tempo para tristezas”.
Eva: Estou muito preocupada... Mês passado tive um sonho com você tão estranho...
Elias: De suas preocupações, sou a menor.
Eva: Tem visto a sua filha?
Elias: Ah, por favor... Estou no fim de uma longa turnê! Ela está com os avós, os tios, os amigos da escola... Para eu compreender, preciso primeiro ser compreendido.
Eva: Está certo!
Elias: Minha querida prima, preciso ir. Desculpe a visita inesperada. Ah, vou levar esse livro comigo.
Um pouco embaraçados, os primos se despedem. Sozinha no escritório, Eva se aproxima do foto do casamento. Para ela, por alguns segundos, aquele casal fotografado pareceu dois perfeitos estranhos. Pegou o telefone, discou para o marido. Este celular está temporariamente fora da sua área de cobertura. Com um suspiro profundo, levantou e foi ordenar à cozinheira qual seria o almoço.

Longe da esposa, Orlando cuidava de um problema particular. Ninguém conhece seus propósitos, nem mesmo o detetive contratado, que não para de tagarelar.

Detetive: É longe o lugar, se quiser posso dirigir um pouco...
Orlando: Gosto de pilotar.
Detetive: Deve ser uma pessoa muito importante, para o senhor largar imediatamente seus compromissos.
Orlando: Não gosto de perder tempo, nem de adiar as coisas.
O detetive era uma velha raposa criada no departamento de investigação da polícia civil. Há poucos anos se aposentou e começou a prestar serviços particulares para gente graúda. Ele tem por hábito, antes de prosseguir com um caso, investigar o contratador. Questão de precaução. Logo, através de uma simples dedução, sabe quem Orlando procura. Também imagina o quanto quer encontrar essa pessoa.

Detetive: Vire nesta estrada de chão.

O investigador tem pressa em resolver o caso, tem urgência em pegar o dinheiro e saldar aquela dívida do pôquer, antes que os cobradores entrem em sua casa, revelem para a sua mulher que ele nunca se curou do vício.
Detetive: É esta a casa.
Ele toca a campainha, uma adolescente atende e os encaminha para a sala de estar. Depois de acomodá-los, disse: “Vou chamar a vovó”. Orlando não conseguia disfarçar a ansiedade, suas mãos suavam, o coração batia acelerado, cada segundo de espera torturante. Então, a garota surge, empurrando uma cadeira de rodas. A velha sentada nela olhou para Orlando.

Velha: Meu filho... Ó bom Deus, trouxe meu filho de volta.

Tomado pelo susto, Orlando correu até a senhora, se ajoelhou e a encarou, procurando, sob os desenhos das rugas, o antigo rosto.

Velha: Não sabe o quanto me arrependo tê-lo abandonado...
E por trás das palavras, o som da antiga voz.

Orlando: Não é ela!
Detetive: Como não?!?
Velha: Meu filho...
Orlando: Cale-se!

Para espanto dos presentes, Orlando retirou o talão de cheques, preencheu uma quantia, virou para a senhora na cadeira de rodas.

Orlando: Tome isso como um cachê pela sua representação.

E olhando para o detetive:
Orlando: Vamos embora!

No jardim da entrada da casa, o investigador buscava uma explicação convincente.

Detetive: O senhor deve entender que esse tipo de equívoco é comum em uma investigação na qual não temos um retrato da pessoa desaparecida e...

Antes que terminasse a confusa oração, Orlando desferiu-lhe um soco no estômago. Em seguida, passou-lhe uma rasteira, depois um chute no fígado e um soco no nariz. O sangue ainda descia sobre sua face, quando o agressor empurrou um cheque pela sua goela.

Orlando: Isso é para pagar a sua dívida. Agora, tem a obrigação moral de encontrá-la.

Furioso, entrou no carro, deixando o investigador caído na grama do jardim.

“Que eu jamais me aproxime do reino de sonho da morte. Que eu possa trajar ainda esses tácitos disfarces: pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas. E comportar-me num campo como o vento se comporta. Nem mais um passo. Esta é a terra morta. Esta é a terra do cacto”.

(a seguir: Ritual macabro)

sábado, 4 de abril de 2009

Malditos - Cap. VI

Showbusiness


Clap! Clap! Clap!

Elias ainda ouvia o som dos aplausos, sentado sozinho em seu camarim, meia hora depois da apresentação. Seu rosto refletido no espelho de armação iluminada. Há dez minutos faz a mesma coisa, acende e apaga as lâmpadas, para ver o que o espelho reflete na luz e na sombra. Ele acende e se vê refletido no palco, o microfone a sua frente, o silêncio na platéia, os breves segundo até abrir a boca para cantar, os breves segundos de vazio. Apaga, o espelho mostra o corpo dela, seus lábios secos.

Toc! Toc! Toc!

Elias: O que foi?
Empresário: O pessoal está esperando demais. Daqui a pouco o champagne vai acabar...
Elias: Só mais um minuto e estou indo.

Na sala anexa ao camarim, dezenas de altos funcionários de uma companhia telefônica, e algumas celebridades, esperavam para apertar a mão do seu ídolo, trocar meia dúzia de palavras com ele, tirar algumas fotos simulando intimidade, depois postar isso em seus blogs ou no you tube. Elias e seu empresário chamam esse momento pós-show de “olá-boa-noite-como-vai”. E algumas pessoas pagam para isso.

Empresário: Ele sempre fica assim depois do show, é muita energia, precisa de um tempo sozinho para descarregar, sabia que o Caetano... Olhe: lá está ele!

Desde o início de sua carreira, tocando em clubes pequenos, Elias descobriu que a relação entre artista e público é tudo, menos uma coisa amistosa. Foi nesse período, aos dezenove anos, que conheceu o seu empresário. Este tinha por volta de trinta e poucos anos. Hoje, passados quatorze anos, ele se tornou uma figura peculiar, com sua baixa estatura, sua calvície disfarçada, seu cavanhaque sempre impecável, e as intermináveis histórias sobre namoradas famosas, de preferência modelos.

Empresário: Vem cá, garoto, quero te apresentar a uma pessoa...

Quando viu Elias pela primeira vez, logo lhe saltou aos olhos a beleza do jovem. Sua namorada na época comentou: “Parece uma estátua grega bronzeada”. Depois prestou atenção na música. Elias tocava guitarra acompanhado por um percursionista, o repertório agradava, havia muitas meninas na platéia. Potencial enorme para o sucesso, mas tinha um problema. O astro tratava os fans com desdém. Por isso, uma de suas primeiras lições foi: “Seja educado, gentil, simpático”. Mas a premissa de cumprir o impossível não é obrigatória.

Empresário: Elias, este é o manager da empresa, o homem que está revolucionando o circuito de grandes festivais do país.
Manager: O show foi fantástico. Na minha opinião, atualmente, você está vivendo seu auge criativo, não acha?

Antes de responder, Elias mergulhou neste monólogo interior: “O que mais me irrita é que imagina que estamos no mesmo nível. É arrogância demais. Seria a mesma coisa se achasse que estou no mesmo nível do Dylan só porque gosto da música dele”.

Elias: Você conhece aquela história do Matisse? Não! Vou te contar. Um camarada, um industrial talvez, comprou um quadro do artista, As meninas. É uma pintura famosa. Pois bem, o comprador elogiou as cores, o talento do pintor, etc, mas tinha uma crítica: aquilo não eram meninas. Mattise respondeu: “Não! Aquilo é um quadro”.
Manager: Interessante, mas...
Elias: O que quero dizer é: nós nunca sabemos quando estamos no nosso auge criativo.

Pressentindo o prenúncio de uma confrontação desnecessária, o empresário acenou para o fotógrafo da revista de celebridades.
Empresário: Ei, meu chapa, tire uma foto de nós três!

O empresário se posicionou estrategicamente atrás dos dois, os uniu com seu abraço, como era menor em estatura, quase desapareceu da foto. Suas mãos foram as únicas parte do seu corpo fotografado. Um observador desatendo poderia facilmente ver Elias e o manager amigavelmente abraçados; e no lugar da mão do empresário ao redor da cintura deles, ver uma afinidade.

Elias se desembaraçou do manager, lançou um olhar panorâmico sobre as vinte pessoas reunidas na sala, até encontrar a única que convidara: Pedro Cigano, o ocultista. Ao seu lado estava uma jovem, muito atraente.
Elias: Olá, Pedro, fico feliz pela sua presença.
Pedro Cigano: Saudações, meu amigo.
Elias: Senhorita...
Pedro Cigano: Ana. Ela será a condutora no ritual. É por isso que estou aqui, creio que podemos realizá-lo na próxima sexta-feira.
Elias: Daqui a dois dias.

Ao longe, o empresário observava os três, principalmente o Cigano, pois o considerava um “charlatão” se fazendo passar por guru de celebridades. Se fosse há tempos atrás, “Elias o escorraçaria”. Mas desde o fatídico dia, o músico tornara-se mais introspectivo e estranho. Foi nesse momento que o “pseudo-místico” começou a se aproximar do cantor. Sobre o que eles conversam?

Pedro Cigano:... e assim se fará. Se não me engano, aquele senhor elegante, conversando com o seu empresário, é o seu tio?

Sem dúvida. O que seu tio faria aqui? Uma situação bem incomum.

Tio: Olá, Elias, tenho um assunto de família a tratar, se você ficasse em casa ou atendesse ao telefone não precisaria vir aqui para tomar o seu precioso tempo.

Tanto o Cigano quanto o empresário fingiram discrição, mas no fundo queriam cada detalhe daquele assunto particular, qualquer coisa valeria ouro na disputa pela confiança do astro. Elias levou seu tio para o camarim anexo.
Elias: Então, tio, o que está acontecendo?
Tio: È sobre Orlando... Ele é um bom genro. Está crescendo...
Elias: Sempre foi muito ambicioso.
Tio: Enfim, ele advogou do direito de não convidá-lo para sua cerimônia de consagração.
Elias: Infelizmente, nós dois sabemos disso, ele não tem esse direito.
Tio: Meu sobrinho, seja razoável, o que a cerimônia significa para você? Nada. Desde aquela tragédia, se afastou da Ordem. A única razão para não aceitar o pedido é o orgulho. Sabe o quanto te admiro, entre todos, sempre foi meu preferido, mas lhe peço...
Elias: O senhor se engana, estou muito interessado na cerimônia. Orlando não compreende a natureza da consagração, e mais uma vez me prova isso. Se ao menos viesse pessoalmente discutir a questão... Ele não está preparado! O senhor sabe.
Tio: Meu filho, sente! Vamos tentar entender...
Elias: Não há nada a ser entendido. Amanhã conversarei pessoalmente com Orlando. É preciso ter mais respeito com um membro de sangue da Ordem. Mas foi bom ter vindo, porque tenho um outro assunto, mais importante, a tratar com o senhor. Na verdade, eu queria conselho.


(no próximo capítulo: Conflito de classes).