quarta-feira, 21 de abril de 2010

Malditos - Cap. XX

Mais estranho do que o Paraíso

Orlando entrou em casa como um ladrão, sem avisar, na surdina, pela porta dos fundos. Há muito tempo algo o inquietava. Porém, a sucessão dos fatos inesperados dos últimos meses havia ocupado todo seu tempo. Agora, afastado dos negócios da Ordem, podia se ocupar desta pequena dúvida, “a desconfiança típica dos maridos”: o que sua mulher faz nas tardes de quinta-feira? O leitor atento talvez não se lembre, mas no início do relato sobre os acontecimentos narrados no segundo capítulo, ele havia ligado para a casa a procura da esposa. Ela não estava. Assim como nas quintas seguintes.

Logo de manhã notou que Eva ansiosa, talvez por causa de suas férias inesperadas, por isso inventou um compromisso perto da hora do almoço. “Não almoçarei em casa e só voltarei à noite” – ele disse e quase pôde ouvir a respiração dela aliviada. Planejava flagrá-la se preparando para sair.

Circulou pelos cômodos, nenhum vestígio da mulher, apenas ouvia a voz da governanta, na varanda, contando a história de Chapeuzinho vermelho para a menina. A velha escolheu a versão de Charles Perrault, mais assustadora. Ao final, a criança lhe perguntou: “Por que o lobo comeu a Chapeuzinho?”. Com uma voz terna respondeu: “Porque essa era a natureza do lobo”. Ao se aproximar delas, se assustaram, a menina correu para os braços da governanta, que olhou intrigada para o patrão.

Orlando: Onde Eva está?
Governanta: Ela saiu.

Essa resposta tão natural foi dita com um sorriso oculto nos lábios. Ela não tinha o menor respeito por ele. “Por qual razão?” – Orlando elucubrava consigo mesmo – “Será por causa de minha origem modesta, aliás, como a dela? Velha idiota. Incrível como os empregados, com o tempo, assumem a mesma arrogância dos seus patrões. Deixe estar, em breve, não precisarei mais aturar a sua presença”.

É difícil saber se a governanta captou os pensamentos de Orlando, seja como for, ela tomou a menina pelas mãos.

Governanta: Vem, meu anjinho, vamos brincar na piscina... Você quer?

A menina correu alegre pela grama, o sol brilhava sobre seus cabelos loiros encaracolados, e a olhando assim, sob a luz do dia, ela bem parecia a figura daqueles anjos renascentistas de Rafael.

Orlando pegou o celular e discou para a esposa. Esse número se encontra desligado ou fora da área de cobertura.

Taciturno, voltou ao interior da casa, passou pelo bar montado na sala de estar, sentiu vontade de abrir uma garrafa de uísque, acender um cigarro... Mas não! O seu corpo deve estar limpo até a realização da cerimônia, daqui a poucas semanas. Entrou na biblioteca, retirou da estante o Paginarium fulvarum, deveria estudar mais sobre os fundamentos da Ordem.

Quando já se encontrava absorto na leitura, seu celular tocou: um número desconhecido no visor.

Orlando: Alô?

Era Parafuso. Falava mastigando as palavras. Queria vê-lo urgentemente. Anotou o endereço, uma vila distante. “Que esperto” – pensou – “Ninguém imaginaria que poderia estar escondido ali”. Talvez tenha sido levado pela vontade de conversar com um amigo, ou mera necessidade de sair de casa, pois imediatamente fechou o livro, pegou a chave do carro e partiu.

Ao chegar ao local indicado, Orlando quase não acreditou no que viu, a ponto de conferir três vezes o endereço escrito no papel. Era uma casa muito humilde, com uma cerca gasta de arame farpado, Parafuso estava levando a sério demais o seu disfarce. Como não havia campainha ou qualquer coisa do tipo, bateu palmas na esperança de um equívoco. A figura que surgiu na porta lhe gelou a alma.

Era o velho amigo Leandro e, ao mesmo tempo, não era mais. Estava em uma cadeira de rodas. Com a voz trêmula, perguntou:

Orlando: O que aconteceu?
Parafuso: Entre...

Fazia exatamente três meses desde o acidente. Parafuso não foi muito preciso nos detalhes, contou que havia acordado em um hospital.

Parafuso: Fui salvo por um casal de idosos. Eles vinham na minha contramão, quase bati no carro deles... Pararam, desceram pelo barranco em que capotei e me encontraram inconsciente. Eles poderiam ter pego a bolsa com o dinheiro e me deixado lá... Por que não? Quase os matei. Chamaram o socorro e... A bolsa está aqui, intocada. Essa é a casa deles. Quero ajudar a reformar, não aceitam... Você está surpreso?
Orlando: Eu... Eu... Não sei... Sinto muito.
Parafuso: Por quê?
Orlando: Se não tivesse te envolvido...
Parafuso: Confesso que pensei muito sobre isso... Em alguns momentos, desejei o inferno para você... Mas esse casal tem me ensinado muito sobre a vida. Eles me acolheram. Não aceitam nada além de minha gratidão. “Não é com dinheiro que irá nos recompensar” – me dizem... Mas há aí um pouco de teimosia. Não saio daqui enquanto não aceitarem minha ajuda para melhorar a casa... Tem uma linda horta lá nos fundos, um galinheiro meio caído e um chiqueiro pior ainda... Enfim, eles comem o que plantam, têm ovos, carne... Você fala tanto sobre liberdade, autonomia, não ser empregado de ninguém... Então, será que não têm o que tanto procura? Foi por isso que te chamei. Meus filhos estão aqui, e minha mulher também... Quanto tempo perdido buscando isso? Mas já sei o que está pensando, te conheço, devo ser algo mais ou mais menos assim: “Só há solidariedade na tragédia” ou “todos têm pena de um aleijado” ou “agora ele vai abrir a Bíblia e ler algum versículo para mim”... Eu te chamei aqui para dizer que não tem nenhuma responsabilidade sobre o que aconteceu comigo. E também para olhar pela última vez nos seus olhos, porque gosto de você, e acho que nós dois precisamos de um abraço... Não sei com o que está metido ou quem, mas desconfio que a liberdade que tanto deseja não está onde procura...
Orlando: E nem aqui!
Parafuso: Não seja arrogante.
Orlando: Preferia que tivesse aberto a Bíblia e lido algum versículo. Foi pela nossa amizade que te pedi para sair da cidade. E esse foi o abraço mais forte que lhe dei. Fico feliz que seus filhos estejam aqui com você, mas fico triste que tenha me chamado para me dar um sermão sobre “o valor das coisas simples da vida” e, do alto de um lugar superior, tenha aproveitado a ocasião para romper a nossa amizade.
Parafuso: Não confunda as coisas...
Orlando: Bem, então, como posso entender “o olhar pela última vez nos meus olhos”?
Parafuso: Por que não sairá vivo dessa situação.

Os dois se olharam profundamente, muita coisa passou – carinho, mágoa, cumplicidade, desconfiança – e se dissipou rapidamente.

Parafuso: Acho que não irá querer conhecer a horta.
Orlando: Acho que não irá me negar o último abraço.

Despediram-se em silêncio. Tão logo se encontram a sós – Parafuso olhando para a horta e as formigas comendo várias folhas de verduras; Orlando dirigindo de volta para casa, ofuscado por faróis – um peso enorme se abateu sobre a consciência de ambos, questões e respostas contraditórias.

Enquanto ocorria esse encontro, em outro lugar, Eva vivia seu dilema particular, ou seja, a resposta à pergunta de seu marido: “o que ela faz nas tardes de quinta?”. Há meses e meses, desde o início de nossa história, secretamente, ela se dirige a um determinado lugar, porém nunca consegue atravessar o portão. Houve vezes em que ficou horas diante da entrada até desistir. Contudo, no que parece ser um dia diferente, hoje ela resolveu entrar, deixando para trás a placa prateada chumbada no muro, onde se lê: Dr. Gianne Casanova, ginecologista.
(a seguir: Qualquer um perdoa, menos Deus).


sábado, 3 de abril de 2010

Malditos - Cap. XIX

Motivo condutor

Os ventos da revolta voltam a soprar, arrombando as portas de nossa percepção, despertando os bondosos do seu sono, tornando real o pesadelo dos maus.

No teatro lotado, o Maestro retira sua guitarra do estojo, a voz sinuosa volta a cantar, o sibilo de uma cascavel, nos lembrando como tudo começou e como tudo vai terminar.

A primeira canção é sobre um homem ambicioso chamado Orlando e a encruzilhada na qual se encontra. Ele entregou sua devoção a uma mulher e seu desejo a outra. Ah, essa parte é tão comum! Até os versos seguintes sobre o profundo desprezo da personagem pela ordem social, pelas classes, sua busca primordial por poder, que o levou a assinar um contrato, para não ser nem escravo e nem senhor, para além do bem e do mal, apenas um homem livre, forçando os limites de sua vontade, elegendo o misterioso e temperamental Destino como oponente.

Ó suave e malicioso menestrel, cante uma balada de amor, aquela sobre as duas mulheres, Eva e Diana, a senhora e a princesa. Quem orienta a vontade feminina? A serpente ou a vingança? Porque, segundo a canção, uma sente o ambíguo desejo de romper com sua tradição e, ao mesmo tempo, teme a punição de sua própria tradição. A outra deseja ferir o seu amante, uma reação ao desprezo pelo seu amor, mas a cada ferida no corpo do amado é o seu coração que sangra.

Depois dessa bossa, vem o blues sobre o amaldiçoado, Elias – o belo, profeta da tristeza. Talvez se Helena fosse feia, não haveria a Ilíada. Essa é uma canção sobre outro menestrel, que aprendeu a tocar com o próprio Maestro. Ele encontrou o verdadeiro amor, a cara-metade como dizem por aí. Provando ser fora do comum, alcançou também o sucesso, pois os homens ordinários têm uma coisa ou outra. Como os antigos heróis gregos, a Glória foi sua madrinha. Porém, Elias não tinha em seu sangue o gene de um Ulisses, mas sim o de um Orfeu, por isso enterrou sua esposa suicida meses depois dela dar a luz à sua única filha, a qual não consegue olhar, porque cada traço lhe lembra o rosto falecido. Sufocado pelo peso do luto, vive entregue à crença nos seus mitos, na esperança que sua mulher possa renascer nos olhos da jovem profetisa Ana. Tudo é engano ou descoberta. Ana pretende levá-lo para outro caminho, sem misticismos, mas o peso da tradição dele o imobiliza. Ao invés da paz que anseia, o novo só lhe promete incertezas.

O maestro aumenta o volume da guitarra, vamos ouvir uma canção política. O Senador, do topo de sua cobertura, vomita enojado o licor doce da democracia. O seu braço direito, menino prodígio, Alexander C. Shelley bebe devagar, dizendo que é preciso mudar para manter tudo igual. È uma velha máxima. Ao redor deles, ovelhas furiosas: prefeitos, empresários e empreiteiros querem lucrar, dinheiro sujo e imagem limpa. Todos reunidos ao redor da mesa de negócios. Na mira, uma mina de urânio escondida sob os pés de pescadores, que acreditam serem os peixes sua única riqueza. Como seria fácil deixá-los pescar, mas sempre aparece um ambientalista para perturbar, um tipo que atira ali e acerta em outro lugar, sabe falar e sorrir para os fotógrafos. Um sujeito assim é difícil encarar, porém, disse Orlando, em uma sociedade democrática, todos devem esconder seus vícios, e nosso idealista tinha os seus. Nessa sociedade, o mais importante é a aparência, concluiu Orlando, sem discordâncias. Logo, bastava criar uma situação para o ambientalista com sua cocaína aparecer e o jornalista fotografar. Quem segue os passos de santo com pés de barro? Mas quando se luta contra o Destino, nada sai como o previsto, não é mesmo?

“Agora Maestro, por favor, desligue a guitarra! Deixe-me entender, que trama louca! O ambientalista morreu, os pescadores clamam por justiça, a polícia suspeita de crime premeditado, e ainda por cima existe essa tal Ordem, tipo uma seita secreta. No resumo estava escrito novela de horror... Tirando algumas passagens, como a do cemitério, ou Orlando encontrando sua mãe louca... É uma narrativa policial? Claro que não!”

E no silêncio do auditório, alguns ouvintes levantando, outros permanecendo, por puro respeito ao compositor, as cortinas se fecham. Devo ir embora? Muitos saem do teatro reclamando. Aqueles que ficam vêem o Mestre de Cerimônias se aproximar do microfone, em dúvida se ele vai explicar ou seguir com o espetáculo: “a parte XI ao XVIII, foi um improviso, para o baterista e o baixista solarem, agora retornaremos ao nosso leitmotiv”.

As cortinas se abrem novamente. O menestrel volta a ligar sua guitarra, o pé esquerdo sobre o pedal de distorção.

A primeira música é um rock’n roll sobre um cara comum chamado Parafuso. É uma história sobre amizade e desconfiança, lealdade e menosprezo, sobre uma mulher, sobre esta certeza: em uma situação perigo, é melhor salvar a própria pele. Esse enredo começa no exato momento em que Parafuso, fugindo de todas as conseqüências descritas acima, capotou com seu carro, açoitado por visões fantasmagóricas, cegado por uma luz intensa e, quase surdo, uma voz estrangeira recita estas palavras: “A morte perderá o seu domínio. Nus, os homens mortos irão confundir-se, com o homem no vento e a lua do poente; quando, descarnados e limpos, desaparecem os ossos, e nos seus pés e braços brilharem as estrelas”.


(na próxima semana: enterrado vivo em uma terra estrangeira).