segunda-feira, 25 de maio de 2009

malditos - Cap. X

Perdas e danos


Em busca do poder, Orlando trabalha para ser aceito por uma poderosa Ordem, porém terá que provar seu valor. Na sua jornada, envolveu um amigo e um amor do passado em um assassinato. Para ele, seu plano foi perfeito. Agora há um inspetor investigando seu comparsa, Parafuso, que acabou de entrar ofegante no escritório de Orlando. Esse não é o mundo da literatura realista dos anos 2000. Este é o mundo de malditos.
Parafuso: Preciso te contar como foram as minhas últimas quatro horas. No final, espero que entenda a situação em que me colocou e o preço que isso vai te custar.

Orlando ouviu o mito da cambaxirra e todos os blábláblás. Supersticioso demais. Quando mencionou o nome de Diana, se sobressaltou, ouviu atentamente cada palavra, pediu para repetir partes, confirmou impressões. Parafuso só não contou sobre a desconfiança dela. Isso era “segredinho de casal”. Por que ela o procurara? Aquela mulher usa um repertório infinito de recursos para obter qualquer coisa de um homem. Ainda mais um apaixonado. Portanto, o que estava acontecendo no escritório de Orlando não era bem uma conversa, mas um jogo de gato e rato.
Parafuso: E vamos ao pior, ao superlativo. Depois que Diana saiu, um inspetor da polícia federal apareceu, adivinha para quê?
Orlando: Algo relacionado ao acidente? Ou às suas atividades “extracurriculares”?
Parafuso: Você está tirando onda com a minha cara, mas vai comer aqui... Na palma da minha mão.
Orlando: Vai confessar sua participação na sabotagem de um carro, resultando em um acidente fatal?
Parafuso: Se essa for a última saída, sim! E não me venha falar em amizade, porque a jogou no lixo.
Orlando: Você foi intimado?
Parafuso: Fui convocado a “colaborar”. Quer saber como?

Enquanto Parafuso explicava o convite para comparecer ao depósito da polícia federal, daqui a dois dias, para analisar o carro sabotado, a mente ágil de Orlando procurava, entre uma lista de rostos, um no departamento de investigação. Teria de ser alguém com teto de vidro, que não pudesse chantageá-lo no futuro.

Orlando: Você presta serviço para muitos policiais, talvez tenha sido uma coincidência.
Parafuso: Por acaso existe acaso?
Orlando: É...
Parafuso: Eu quero duas coisas de você: proteção e dinheiro.
Orlando: Sabe que sou um cara muito precavido...
Parafuso: Não tem parecido!
Orlando: Mas sou! Em todo plano, algo sai fora do previsto, porque não há como prever. Quando elaboro alguma coisa, começo pelo pior, e trato de evitá-lo desde o início, arranco a vitória das garras da derrota. Estou ciente sobre os seus gastos com a ex-esposa, a pensão para os filhos, entendo porque age dessa forma.
Parafuso: Esse inspetor reabriu a investigação sobre acidente do ambientalista, até o fim desse caso, eu quero sete mil reais em dinheiro, por mês, aqui na sua sala, a partir da data de hoje. E não estou agindo assim por mesquinhez, mas por profissionalismo, já que ser investigado pela polícia federal não estava no nosso contrato.
Orlando: Está certo, certíssimo! Só espero que essa seja a última condição para sua “colaboração”. Caso contrário, vou passar a chamá-lo de prego.

Depois disso, reinou o silêncio e um clima de animosidade. Ofensas implícitas foram trocadas, uma antiga amizade ganhou rachaduras em sua base, não houve abraços ou cumprimentos gentis na despedida.
Olhando as pilhas de papéis sobre sua mesa, Orlando imaginou uma cidade medieval. A torre mais alta – os processos relacionados a Ordem – o castelo. As pequenas pilhas – os processos conjugais e afetivos – as humildes casas de seus moradores. Em sua cidade não existia prisão. A cabeça doía. Tomou dois analgésicos junto com uma enorme xícara de café. Notou algo novo em seu organismo: mesmo vivendo uma situação de tensão, não sentiu vontade de fumar. Olhou para o relógio, consultou sua agenda, riscou todos os compromissos. Pegou as chaves do carro decido a encontrar Diana imediatamente.
No caminho, Orlando sentiu remorso. Muito remorso remexido com medo. Diante do Destino e seu jogo misterioso, é muito difícil não tremer. Era comum, na Idade Média, pintar os seres humanos como fantoches do Destino. Enquanto dirigia, sentiu vontade de voltar ao tempo, desfazer, escolher outro caminho conduzindo à liberdade. Ao invés disso, vivia um momento de arrependimento, o primeiro sinal de fraqueza humana. Então, projetou duas realidades possíveis: uma na qual está comemorando sua consagração; outra que não conseguia imaginar. Essa capacidade de projetar sempre a vitória chamou atenção da Ordem para sua vocação. Nós chamamos isso de otimismo, eles chamam de positivismo. E nós podemos aprender muito da essência do positivismo observando o movimento de Orlando diante das conseqüências dos seus atos: um primitivo em fuga sentindo o bafo do mamute na sua nuca.
Diana cuidava dos pés de rosa no seu jardim. Sua empregada a auxiliava. Junto com elas um bebê no seu carrinho protegido do sol. Uma estranha planta estava se alastrando, como uma espécie de trepadeira, se alojando no tronco e caules de outras plantas.
Diana: Nunca vi... Você conhece?
Empregada: Conheço não senhora!
Diana: A roseira está seca... Essa planta é uma parasita!
Empregada: Tem alguém chegando.
O barulho do motor do Mercedes de Orlando assustou a todos, principalmente o bebê, que começou a chorar. Ele saiu do carro como um raio, em segundos já estava diante de Diana, que ainda segurava nas mãos a estranha planta.

Orlando: Olá... A gente precisa conversar

Ele olhou surpreso para o bebê no colo da empregada, que o fazia parar de chorar.

Diana: É a filha da minha empregada. Você a assustou. Vamos conversar no salão.

Era impressionante o modo como Diana transformou um sítio abandonado em um lugar de calma e paz. Olhando para variedade colorida de flores, roseiras, pés de goiaba, o som doce do riacho que corre além bosque, Orlando pensava: “É. O senador foi generoso”. Mas é sempre bom desconfiar da generosidade de um sovina. O sítio caiu nas mãos do senador. O casarão pertenceu inicialmente a um grande comerciante do século XIX, segundo as más línguas, traficante de escravos, enfim... O imóvel foi passando de geração a geração até que o perderam em uma mesa de pôquer. O senador fez algumas melhorias no início, mas logo desistiu do lugar. Ele tentou vendê-lo, poucos demonstram interesse devido ao modo como fora adquirido. Como o imóvel não constava em sua declaração de bens, e a oposição mordia seus calcanhares, o político começou a considerá-lo um elefante branco. No final das contas, o sítio foi útil para agraciar uma bela dama com um presente a altura.
Ao chegar ao salão, Orlando não se conteve mais.
Orlando: Você acha que eu matei o ambientalista?
Diana: Parece que já admitiu isso para si mesmo.
Orlando: Quem matou aquele homem foi você!
Diana não se conteve, com os olhos lacrimejando e as palavras cheias de raiva.
Diana: FILHO-DA-PUTA!

Orlando se levantou com mais raiva e a esbofeteou. Ela caiu sobre o sofá chorando. Diante do ato impensado, ele se jogou aos seus pés.

Orlando: Por favor, confie em mim...

Ela o afastou, enxugou as lágrimas, respirou fundo.
Diana: Você mudou muito...
Orlando: Preste atenção: foi um acidente.
Diana: Tramado por você. Eu vi o Parafuso...
Orlando: Quer saber o que eu planejei: você entregaria o pó para ele, quando estivesse voltando, o carro ia quebrar, eu o seguiria, chamaria um agente nosso da civil, o ambientalista seria revistado, preso por porte de droga, acabou.
Diana: Não sente culpa?
Orlando: Não! Eu não o matei. Foi ele que se matou! Com a sua ajuda. Por que deu conversa para ele? Por que não entregou a encomenda e saiu como o combinado?
Diana: Queria saber porque ele havia virado seu inimigo.
Orlando: Veja bem: ele se matou. Vamos voltar a cena. Eu lhe apontei uma arma, tirei você dos braços dele, o que fez? Poderia ter voltado ao bar, o mais sensato, chamado os seus amigos, a polícia e o escambau... Mas o que ele fez? Entrou no carro para dar mais uma cheirada... E depois saiu como um louco pela estrada. Não demonstrou nenhum apreço pela vida.
Diana: Que pessoa estranha você está engendrando dentro de si.

Orlando nada respondeu, apenas olhou além do horizonte, com uma única convicção: é impossível voltar atrás, e o que está traçado, deverá ser cumprido.
(a seguir: Welcome Mr. Robert Johnson)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

malditos - Cap. IX

Todos têm um segredo, menos Lennon e seu macaco

Sentado com os pés sobre a mesa, Parafuso abria o jornal do dia, quando uma cambaxirra voou através da janela e pousou sobre uma viga de madeira no lugar mais alto da sala.
Parafuso: Maldição.

O mecânico levantou rápido, enrolou o jornal em forma de cone e, aos pulos, tentou espantar o pássaro agourento. Seu pai lhe ensinou que o canto da cambaxirra trazia azar. Parafuso correu até a janela, após afastá-la, para se certificar se estava longe dos seus domínios. Depois olhou para baixo, para fiscalizar o trabalho dos seus empregados. Um deles trabalhava na suspensão de um Renault, quando uma garota de minissaia passou pela calçada. Ele fez uma gracinha, ela fez um sinal obsceno, os outros mecânicos riram, o estepe se desencaixou e o carro desceu pela calçada assustando os passantes.

Parafuso: Puta-que-pariu!

O chefe jogou o jornal de lado e furioso desceu as escadas. O hilário acidente impediu que ele lesse a seguinte notícia: Associação de pescadores não aceita a hipótese de acidente.

Parafuso: Porra, ninguém trabalha direito!
Empregado: Pô, chefe, não sei o que aconteceu...
Parafuso: Você não calçou as rodas traseiras... Que burrice!... Quase matou aquela velhinha do coração! Como está o carro?

Enquanto checava o veículo, os outros empregados tiravam sarro com o colega burro: “Foi gastar a cocata” “É muito otário!”. “A garota derrubou o macaco com a força do pensamento!” “É a Jean Grey!”. “Ooolha issooo!” Parafuso voltou sua atenção para a origem do espanto dos empregados.

Parafuso: Que surpresa!
Diana: Queria conversar com você.
Parafuso: Vamos para o meu escritório.

Diana detestou o ambiente. Era difícil andar entre as caixas com peças, as pilhas de bateria, o arquivo com as gavetas abertas.

Parafuso: Desculpe a bagunça... Pronto! Sente aqui... Então, aconteceu alguma coisa?

Antes de responder, ela procurou nos olhos do mecânico o antigo e reprimido sentimento. Parafuso a achou mais bonita do que antes, quando a conheceu, como namorada do seu melhor amigo.
Diana: Leandro... Estou preocupada. Acho que Orlando me envolveu em uma situação perigosa. Por isso vim aqui, você sabe em que estamos envolvidos?
Parafuso: Como?
Diana: Por favor, diga pelos menos algo que me tranqüilize.
Parafuso: Não estou te entendo...
Diana: Eu te vi, naquela noite, entrando no carro do ambientalista, saindo, e depois voltando... Te vi entrando e saindo do bar...

Ainda fingindo, Parafuso voltou à cena do crime, tentando imaginar em qual lugar ela poderia ter se escondido?

Diana: Você ficou bastante tempo do outro lado da rua, meio nas sombras, antes do bar abrir. Tinha um carro na frente da árvore, lembra? Você até fumou um cigarro encostado nele. Eu estava lá dentro, deitada no banco de trás, coberta com uma manta negra, protegida pelo vidro escuro.
Parafuso: Ali era realmente o melhor ponto de observação.
Diana: Leandro, em que estamos metidos?
Parafuso: Não estou envolvido em nada.
Diana: ESTÁ SIM! Você participou de um assassinato.
Parafuso: Fale baixo, pelo amor de Deus! Não diga essa palavra! Eu não sei, juro! Mas vou procurar saber. Agora fique calma. Quer uma bebida?
Diana: Uma água... Se houver algum copo limpo.

Enquanto Diana se acalmava bebendo água gelada direto da boca da garrafa, um estranho senhor chegou à oficina. Ele se vestia de modo antigado, usava um lenço para secar o suor do rosto, tinha uma barba grisalha bem cuidada, bochechas levemente rosadas e um olhar bonachão. O tipo se dirigiu a um dos empregados. Este gritou para alto.

Empregado: Chefe, tem um cliente aqui embaixo...

Parafuso se encheu de raiva depois de ouvir o grito estridente, pois interrompeu um raro momento de privacidade e cumplicidade com a desejada mulher.

Diana: Vou indo...
Parafuso:
Deixa o número do seu telefone... Caso eu descubra algo novo.
Diana: 6016-3306.
Parafuso: Vou te acompanhar.

Ao passar pela porta, Parafuso adotou a convenção do cavalheiro: “primeiro as damas”. Diana aceitou e desceu a escada com um sorrisinho satisfeito, enquanto ele olhava para sua bunda. O cliente os esperava no último degrau da escada. Parafuso o encarou com implícita antipatia.

Parafuso: Só um minuto, vou levá-la até o carro.

Antes de abrir a porta, Diana se despediu do velho amigo, deslizando a mão pelo rosto dele, o olhou com ternura e lhe deu um beijo no canto dos lábios.

Diana: Vamos voltar a ser amigos... Precisamos confiar um no outro, porque não confio mais no Orlando.
Parafuso: Não se preocupe. Eu juro.

O cliente os observava curioso como um biólogo ao descobrir uma nova espécie. Parafuso se aproximou:
Parafuso: Pois não, em que posso lhe ser útil?

O senhor ensaiou um clima amistoso. Observando os empregados, os vários carros na oficina, simpático brincou:

Cliente: Vejo que a crise internacional não chegou ao seu terreno.
Parafuso: Que crise? Não há crise nenhuma. Os donos dos jornais - esses sim! – ganham dinheiro com essa crise.

Parafuso parou no início da escada, encostou o braço sobre o corrimão, fitou sério o cliente, jamais o levaria para o seu escritório. Qualquer negócio resolveria ali mesmo, no meio da graxa.
Cliente: Eu o procurei em busca de uma opinião técnica, afinal o senhor é “o melhor mecânico da cidade”. A fama precede o homem.

Parafuso o ouvia com visível impaciência: “Eis aqui um sujeitinho cheio de rodeios!”.

Cliente: Oh, perdão, ainda não me apresentei. Meu nome é Benedito Ramos Soares Manso, sou Inspetor da Polícia Federal, fui convocando para retomar as investigações sobre o acidente que vitimou um funcionário da prefeitura, parece que algumas evidências ainda estão nebulosas.

A cada palavra o coração de Parafuso batia mais forte, ao final da apresentação, seus batimentos estavam mais rápidos do que o piscar dos seus olhos.

Parafuso: Podemos conversar no meu escritório. Acho mais apropriado.
O mecânico voltou a subir as escadas, tentava controlar o nervosismo, mas só em imaginar (e não conseguia pensar em outra coisa) que, talvez, o inspetor já estivesse na oficina quando Diana falou aquela palavra... Esse pensamento o fazia suar frio.

Parafuso: Por favor, sente-se.
Inspetor: O senhor está com frio? Parece que está tremendo...
Parafuso: Não! Ah, sim... Uma pequena infecção na garganta... Estou tomando um antibiótico... Eu ainda não tomei o comprimido... Muito trabalho... Só vou pegar o comprimido... Aqui está!... Uma água, uma água... Pronto!... Pois bem...
Inspetor: Não coloque o trabalhe acima de sua saúde. Não vou tomar mais o seu tempo. O senhor poderia prestar uma colaboração à investigação, analisando o carro da vítima, seu talento é uma unanimidade, por isso será de grande valor uma opinião eminente e definitiva... Poderíamos agendar um dia?
Parafuso: Sim... Estou ao seu inteiro dispor.
O inspetor anotou o dia e o horário, mas seus olhos não estavam na agenda. Parafuso, em curtos intervalos, coçou várias vezes a cabeça. Isso era digno de nota. Por fim, o agente, sempre simpático, se despediu com um forte aperto de mão. O mecânico ficou alguns minutos sentado, enquanto o oficial descia. Tão logo se certificou da partida, correu para a porta e a fechou aflito.

Parafuso andava de um lado para outro, derrubando caixas, espalhando peças pelo chão, buscava organizar os pensamentos, enfim, lutava contra o medo. Profundamente supersticioso, procurava respostas através de sinais. Estranha coincidência. Diana e a polícia aparecem no mesmo dia e na mesma hora. Será que a seguiram? Sim! Claro! Eles já sabem tudo. Eles não sabem nada. Não há nada. Não há impressões digitais. Ninguém o viu? Ela. Não! Todos a viram com o ambientalista no bar. Orlando... Orlando!

O mecânico pegou as chaves do carro, desceu correndo os degraus, chamou seu empregado de confiança:

Parafuso: Ó Camundongo... Vem cá! Dá uma lubrificada no meu rifle Rossi e o deixe em cima da mesa no meu escritório... Depois feche a oficina, vou demorar.

Parafuso saiu acelerando o Maverick preto. No primeiro sinal vermelho, colocou uma música para se acalmar – Evil woman, Black Sabbath. Pisava fundo.

Parafuso: Maldita cambaxirra!
(no próximo capítulo: causa e conseqüência).

sexta-feira, 1 de maio de 2009

malditos - cap. VIII

Almas gêmeas

Agora são dezoito horas e trinta minutos. O céu vermelho de outono enegrece. O vento frio balança as cortinas das poucas janelas abertas. Os fantasmas chegam com a noite. Elias está sentado no centro da sala de sua cobertura. Ele vê as luzes da cidade se acendendo junto com o primeiro brilho das estrelas, a consciência voltada para o passado. Em suas mãos, o retrato da esposa. Ela está radiante. Dezoito anos. Verão na praia. A foto foi tirada no dia em que se conheceram. Eternamente linda. “Qual o seu nome?”. “Anita”.

Elias e Anita eram primos, mas nunca tinham se visto até aquelas férias. A família conspirou para o encontro. Os longos passeios à tarde, as expedições em busca de lugares exóticos, às noites regadas a vinho e violão. Ela adorava sua voz e foi conquistada por aquela doce melodia. Ele se sentiu imediatamente atraído pela beleza e desafiado pela inteligência da prima. Era perfeita.

O pai de Elias, um homem muito apegado aos costumes, era um ferrenho defensor da união entre parentes, para manter o sangue familiar limpo. Era bom que o filho homem casasse cedo, pois devido às suas tradições, deveria contar com a confiança absoluta da esposa, tal comprometimento não se consegue na união fora do restrito círculo. Há uma série de complicações: pertencendo a uma outra classe, também pertenceria a outro sistema religioso, o que implicaria em outro sistema moral. Para aceitá-la, precisaria se converter. Mas sobre o convertido sempre pairam desconfianças, a principal diz respeito à lealdade, pois se foi capaz de abandonar suas tradições para adotar outra, qual garantia de que não fará outra vez? Desde os dez anos, o filho ouvia esses ensinamentos, e nunca duvidou.

O casamento foi festejado durante dois dias e três noites. Após a lua-de-mel, o casal dedicou seus primeiros sete anos de união ao cumprimento dos deveres para com a tradição, estavam ansiosos para realizar as obrigações espirituais e viver livres.

No sétimo ano de casamento, Elias entrou para a lista dos dez cantores mais ouvidos do país. O preço do sucesso foi as longas ausências de casa. Anita estava grávida. A gravidez, contudo, foi conturbada e dolorosa. A esposa sentia a falta do marido, que vivia viajando de cidade em cidade. Sentia-se abandonada. A família tentava esfriar a situação, esse era o trabalho dele, o sustento da família. Diante desse quadro, com todas as cores da tragédia, Elias decidiu encurtar a turnê. Seu empresário tentou dissuadi-lo, temia o desgaste prematuro da imagem. Mas o motivo, no final das contas, foi entendido pelo público como um ato nobre. Isso só aumentou seu fã-clube.

A criança nasceu sadia. Uma linda menina. Rita. Durante o primeiro ano de vida de sua filha, Elias montou um estúdio em sua casa, escreveu uma série de canções para violão, guitarra, percussão e piano. As canções foram lançadas no álbum O mito de Sísifo. A crítica considerou o disco “sublime”. O público o abraçou como abraçamos parentes distantes.

Já Anita... Vivia no inferno. Os médicos chamaram de “depressão pós-parto”. A mãe tinha aversão pela filha, parecia sentir medo dela. Elias ouviu dos psicólogos vários relatos semelhantes. A causa para o distúrbio, quase sempre, se originava a partir de algum trauma durante a gravidez. Apesar do esforço dos terapeutas, mês após mês, Anita evitava ao máximo o convívio com a filha.

Em meio aos preparativos para sua volta aos palcos, Elias lutava para manter sua família integrada, a batalha ficou mais violenta quando Anita lhe propôs o divórcio. Ela só poderia estar louca. E não apenas o marido, mas o sogro e a sogra pensaram interná-la.

Anita parecia uma ruína. O olhar radiante virou uma expressão perdida e vazia. Uma magreza anoréxica tomou conta dos seus músculos. Vivia trancada em seu quarto, só saía de lá quando tinha certeza que a filha não estava. Nesses momentos, ia para o jardim, caminhava entre as plantas e conversava com o vento. Todos se perguntavam por que razão chegara a esse ponto. Só ela sabia a resposta. A ventura sempre cobra um sacrifício.

Há dois anos, Elias chegou em casa após uma caminhada matinal. Perguntou a um empregado sobre a filha, já que não a encontrava em nenhuma parte da casa. “Ela está caminhando com a mãe pelo jardim”. Ao ouvir essa frase, o coração do pai gelou. Ele as procurou por cada canto verde do bosque em volta da mansão. Quando as encontrou: Ritinha estava de pé, segurando a barra do vestido da mãe, pendurada inerte no ar por uma corda em volta do seu pescoço. A pequena, ao vê-lo, disse: “Papai, a mamãe não quer descer”.

Desde o primeiro momento, quando seus músculos paralisaram e um clarão cegou seus olhos, Elias nunca entendeu a trágica cena. . Por quê? Ele vem se perguntando. Por que ignorou os sinais?

Uma noite, antes do desesperado ato, Anita acordou o marido e falando baixo, como um assassino, o puxou pelo braço até o quarto da filha. Ela dormia como um anjo iluminado pela lua. Apontando para criança, a mãe lhe disse: “É a culpada”. Quase não ouvia sua voz, como se suspeitasse ouvintes invisíveis. Passado o espanto, Elias analisou friamente aquela situação, o contraste entre a inocência e a loucura. Intimamente, escolheu a primeira. Não restava mais dúvidas, conversaria com os familiares e a internaria em uma clínica de confiança.

Após o suicídio da esposa adorada, Elias mergulhou em uma profunda depressão. Foi Pedro Cigano quem começou a resgatá-lo. Ele apareceu indicado pela Ordem, com a objetiva missão de guiá-lo de volta à luz, como Virgílio guiou Dante.

Agora encontramos Elias aqui, sentado em sua poltrona, com a fotografia da amada nas mãos, disposto a mais um sacrifício para trazê-la de volta.

Subitamente, a governanta surge na sala para anunciar a chegada de um convidado.

Governanta: Elias, o sr. Pedro Cigano está na portaria.
Elias: Peça para subir.

Ele retira a foto do porta-retrato, a dobra e a coloca no bolso da calça. Vai até o bar e se serve de uma dose de uísque. Enquanto isso, a governanta recebe Pedro Cigano e Ana, a condutora, e os leva para a sala. Ana carregava no seu colo um gato branco. Mas o que chamou a atenção da serviçal foram os anéis nos dedos do Cigano.

Pedro Cigano: É quase meia-noite, está pronto?
Elias: Estou.

Elias não conseguiu esconder seu espanto com o gato. Ana percebeu e logo tratou de esclarecer.
Ana: É meu animal de estimação, quero que vocês cuidem dele.
Elias: Vou pegar as chaves do carro.

Ele preferiu ir dirigindo até o cemitério onde sua mulher está enterrada. No caminho, Pedro Cigano explicava os pormenores do ritual de transmigração de almas. Pelo espelho retrovisor interno, Elias observava Ana e seu gato. Havia em seu íntimo uma satisfação pelo fato dela ser tão bonita. Por outro lado, não conseguia compreender como alguém tão jovem se dispõe a querer viajar para o reino dos mortos. Outra suicida. Talvez essa fosse a simetria necessária para o ritual.

Eles param na entrada do cemitério. Pedro conversou com o vigia, que abriu os portões. Faltam cinco para meia-noite. Caminhando entre os túmulos, o Cigano questionou Ana.

Pedro Cigano: Quando sua alma abandonar o corpo e penetrar no reino dos espíritos, será uma viagem sem volta. Pela última vez lhe pergunto: é sua vontade?
Ana: Sim.

Os três pararam diante do túmulo de Anita Augusta Soulbley. Meia-noite. A cerimônia nigromântica se inicia. Antes de ser despida e preparada, Ana passa o gato para Elias. Acariciando o animal, ele acompanha a condução do ritual. Pedro Cigano pronuncia palavras em uma língua que para Elias é latim, mas na verdade é aramaico. Á medida que as palavras são pronunciadas com intensidade e fervor, Ana entra em transe, suas pálpebras se movimentam freneticamente. Tomado pela apreensão, Elias aperta a pele do gato. O corpo de Ana treme. Então, subitamente, o animal salta dos braços de Elias para o túmulo de Anita. Tomado de fúria, o felino se autoflagela. Em um movimento louco, o gato crava suas garras sobre a barriga, as pernas, até chegar ao pescoço e rasgá-lo em um corte fatal. O sangue escorre através do pêlo branco formando um estranho desenho sobre o mármore.

Pedro Cigano olha para Elias.

Pedro Cigano: O ritual foi realizado.

Elias chega perto do corpo de Ana, a segura pelos ombros e num misto de apreensão e medo...

Elias: Anita... Anita...
Ana: Ela não está aqui. Sinto muito.
(a seguir: Parafuso entra em parafuso).