sábado, 4 de abril de 2009

Malditos - Cap. VI

Showbusiness


Clap! Clap! Clap!

Elias ainda ouvia o som dos aplausos, sentado sozinho em seu camarim, meia hora depois da apresentação. Seu rosto refletido no espelho de armação iluminada. Há dez minutos faz a mesma coisa, acende e apaga as lâmpadas, para ver o que o espelho reflete na luz e na sombra. Ele acende e se vê refletido no palco, o microfone a sua frente, o silêncio na platéia, os breves segundo até abrir a boca para cantar, os breves segundos de vazio. Apaga, o espelho mostra o corpo dela, seus lábios secos.

Toc! Toc! Toc!

Elias: O que foi?
Empresário: O pessoal está esperando demais. Daqui a pouco o champagne vai acabar...
Elias: Só mais um minuto e estou indo.

Na sala anexa ao camarim, dezenas de altos funcionários de uma companhia telefônica, e algumas celebridades, esperavam para apertar a mão do seu ídolo, trocar meia dúzia de palavras com ele, tirar algumas fotos simulando intimidade, depois postar isso em seus blogs ou no you tube. Elias e seu empresário chamam esse momento pós-show de “olá-boa-noite-como-vai”. E algumas pessoas pagam para isso.

Empresário: Ele sempre fica assim depois do show, é muita energia, precisa de um tempo sozinho para descarregar, sabia que o Caetano... Olhe: lá está ele!

Desde o início de sua carreira, tocando em clubes pequenos, Elias descobriu que a relação entre artista e público é tudo, menos uma coisa amistosa. Foi nesse período, aos dezenove anos, que conheceu o seu empresário. Este tinha por volta de trinta e poucos anos. Hoje, passados quatorze anos, ele se tornou uma figura peculiar, com sua baixa estatura, sua calvície disfarçada, seu cavanhaque sempre impecável, e as intermináveis histórias sobre namoradas famosas, de preferência modelos.

Empresário: Vem cá, garoto, quero te apresentar a uma pessoa...

Quando viu Elias pela primeira vez, logo lhe saltou aos olhos a beleza do jovem. Sua namorada na época comentou: “Parece uma estátua grega bronzeada”. Depois prestou atenção na música. Elias tocava guitarra acompanhado por um percursionista, o repertório agradava, havia muitas meninas na platéia. Potencial enorme para o sucesso, mas tinha um problema. O astro tratava os fans com desdém. Por isso, uma de suas primeiras lições foi: “Seja educado, gentil, simpático”. Mas a premissa de cumprir o impossível não é obrigatória.

Empresário: Elias, este é o manager da empresa, o homem que está revolucionando o circuito de grandes festivais do país.
Manager: O show foi fantástico. Na minha opinião, atualmente, você está vivendo seu auge criativo, não acha?

Antes de responder, Elias mergulhou neste monólogo interior: “O que mais me irrita é que imagina que estamos no mesmo nível. É arrogância demais. Seria a mesma coisa se achasse que estou no mesmo nível do Dylan só porque gosto da música dele”.

Elias: Você conhece aquela história do Matisse? Não! Vou te contar. Um camarada, um industrial talvez, comprou um quadro do artista, As meninas. É uma pintura famosa. Pois bem, o comprador elogiou as cores, o talento do pintor, etc, mas tinha uma crítica: aquilo não eram meninas. Mattise respondeu: “Não! Aquilo é um quadro”.
Manager: Interessante, mas...
Elias: O que quero dizer é: nós nunca sabemos quando estamos no nosso auge criativo.

Pressentindo o prenúncio de uma confrontação desnecessária, o empresário acenou para o fotógrafo da revista de celebridades.
Empresário: Ei, meu chapa, tire uma foto de nós três!

O empresário se posicionou estrategicamente atrás dos dois, os uniu com seu abraço, como era menor em estatura, quase desapareceu da foto. Suas mãos foram as únicas parte do seu corpo fotografado. Um observador desatendo poderia facilmente ver Elias e o manager amigavelmente abraçados; e no lugar da mão do empresário ao redor da cintura deles, ver uma afinidade.

Elias se desembaraçou do manager, lançou um olhar panorâmico sobre as vinte pessoas reunidas na sala, até encontrar a única que convidara: Pedro Cigano, o ocultista. Ao seu lado estava uma jovem, muito atraente.
Elias: Olá, Pedro, fico feliz pela sua presença.
Pedro Cigano: Saudações, meu amigo.
Elias: Senhorita...
Pedro Cigano: Ana. Ela será a condutora no ritual. É por isso que estou aqui, creio que podemos realizá-lo na próxima sexta-feira.
Elias: Daqui a dois dias.

Ao longe, o empresário observava os três, principalmente o Cigano, pois o considerava um “charlatão” se fazendo passar por guru de celebridades. Se fosse há tempos atrás, “Elias o escorraçaria”. Mas desde o fatídico dia, o músico tornara-se mais introspectivo e estranho. Foi nesse momento que o “pseudo-místico” começou a se aproximar do cantor. Sobre o que eles conversam?

Pedro Cigano:... e assim se fará. Se não me engano, aquele senhor elegante, conversando com o seu empresário, é o seu tio?

Sem dúvida. O que seu tio faria aqui? Uma situação bem incomum.

Tio: Olá, Elias, tenho um assunto de família a tratar, se você ficasse em casa ou atendesse ao telefone não precisaria vir aqui para tomar o seu precioso tempo.

Tanto o Cigano quanto o empresário fingiram discrição, mas no fundo queriam cada detalhe daquele assunto particular, qualquer coisa valeria ouro na disputa pela confiança do astro. Elias levou seu tio para o camarim anexo.
Elias: Então, tio, o que está acontecendo?
Tio: È sobre Orlando... Ele é um bom genro. Está crescendo...
Elias: Sempre foi muito ambicioso.
Tio: Enfim, ele advogou do direito de não convidá-lo para sua cerimônia de consagração.
Elias: Infelizmente, nós dois sabemos disso, ele não tem esse direito.
Tio: Meu sobrinho, seja razoável, o que a cerimônia significa para você? Nada. Desde aquela tragédia, se afastou da Ordem. A única razão para não aceitar o pedido é o orgulho. Sabe o quanto te admiro, entre todos, sempre foi meu preferido, mas lhe peço...
Elias: O senhor se engana, estou muito interessado na cerimônia. Orlando não compreende a natureza da consagração, e mais uma vez me prova isso. Se ao menos viesse pessoalmente discutir a questão... Ele não está preparado! O senhor sabe.
Tio: Meu filho, sente! Vamos tentar entender...
Elias: Não há nada a ser entendido. Amanhã conversarei pessoalmente com Orlando. É preciso ter mais respeito com um membro de sangue da Ordem. Mas foi bom ter vindo, porque tenho um outro assunto, mais importante, a tratar com o senhor. Na verdade, eu queria conselho.


(no próximo capítulo: Conflito de classes).

5 comentários:

  1. melhorcapítulo! consciência de linguagem, naturalização dos diálogos (fluentes,módulos e moods rítmicos muito feras), personagens e personificações fortes! sensacional!

    "fans" impagável. fan q fico.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Manda mais um capítulo aí, Songs!!!

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