segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Malditos - cap. XIV


Só elas são felizes


Orlando viveu com sua mãe até os sete anos. Tudo de útil aprendeu com ela: falar, escrever, analisar as pessoas. Agora, dirigindo rápido e ansioso, esperando reencontrá-la depois de décadas, ouve voz dela e sente o cheiro ausente do seu colo. Essa lembrança é doce e serena, o quinhão de sua glória, cujo cego destino pretende privá-lo.

A mãe embalou seu sono com as narrativas dos mestres da narrativa infantil. Adulto, estudou a fundo o imaginário de Perrault, Grimm e Andersen - os prediletos da casa. Quem os leu, sabe: a infância é uma peça de terror, cheia de privações e violência, sofrimento e abandono. Na estrada, Orlando lembra do pai voltando tarde do trabalho, com os desinteressantes almanaques do Capitão-América, os quais vendia aos colegas da escola.

Acelerava o Mercedes. Os carros a sua frente iam para o lado direito da pista, como zebras diante de leões famintos. Vários motoristas sentem esse tipo de superioridade nas rodovias, a sensação de perigo, espécie de teste de coragem ou a última gota de audácia reservada ao homem comum. Nada disso importa para Orlando e seu velocímetro – 120, 140, 180... Absorto no passado, o tempo corre devagar. Ele ainda tem nove anos, está sozinho no quarto, sem sono e sem histórias, o pai bêbado na sala.

A cada curva, uma velha recordação e um novo significado. Quando a mãe, pela primeira noite não amanheceu em casa, ninguém lhe disse a verdade. Nos dias seguintes, as tias e tios respondiam que ela voltaria logo. A criança perguntava se seria amanhã, a única resposta era um olhar de pena. O menino dormia e acordava esperando encontrá-la em qualquer canto da casa. Um dia, seu pai chegou com outra mulher.

Demorou anos para Orlando compreender a realidade a sua volta. Ao entrar na adolescência, como se sua vida fosse uma quebra-cabeças, começou a combinar peças. Às perguntas sem respostas, formulou hipóteses. Tornou-se arredio e analítico. Nas festas familiares, nada falava e tudo observava. Eram nessas ocasiões que mais sentia vergonha do pai. Sobre ele, os comentários giravam em círculo: “Não merecia”, “um homem bom”, “trabalhador”, “ainda encontrará alguém que o mereça”. Cresceu ouvindo essas qualificações e outras mais, para que se orgulhasse do genitor. Ocorreu o contrário. O filho relacionou “humilde” e “honesto” a uma vida medíocre.

Tinha vinte anos quando seu pai morreu de cirrose hepática. Os dois mal se falavam. Faleceu lamentando o fato do filho ter saído o inverso dele. Enquanto lançavam a pá de cal, os parentes estranharam a ausência de uma lágrima no ingrato. Quando partiu do enterro, antes de todos, ele ainda pode ouvir a avó paterna: “É igual à mãe, sem coração”. Esse foi o último contato com sua família. Em seu julgamento final, o pai foi o único culpado pelo afastamento da mãe.
Mas é solução fácil atribuir ao outro a causa de nosso sofrimento. A vida é quebra-cabeça que não se encaixa ou resposta desagradável a uma pergunta inconveniente.
Orlando nasceu com uma inteligência notável. Desde criança aprendia rápido. Na faculdade, logo se destacou e, muito antes de receber o diploma, seus professores já o indicavam a clientes especiais, como o seu futuro sogro. Atração pelo desafio e o amor à glória. Por isso os altos membros da Ordem estão dispostos a ignorar alguns fundamentos da tradição, para ter entre eles alguém com o espírito do século XXI. Somente ignoram que esse ser excepcional nunca conseguiu responder à questão mais importante e elementar de sua vida: “por que ela me abandonou?”. Convenhamos que isso é bem compreensível, afinal, nem Jesus Cristo aceitou bem a rejeição.

Encontrá-la tornou-se uma obsessão. Trabalhou duro para obter os meios necessários. Uma busca difícil, para alguns impossível, não possuía nenhum retrato da mãe, todos queimados pelo marido em uma noite de fúria. Nos últimos anos, Orlando chegou à conclusão que, a ausência de uma resposta, o tornaria idêntico ao pai, um homem fraco.

Finalmente, depois de sete horas dirigindo, chegou ao ponto marcado pelo detetive: um restaurante na estrada. Ele já o esperava na porta. Antes de abri-la, Orlando voltou por um segundo ao último encontro entre eles. Abriu o vidro do carro.

Detetive: O senhor chegou bem mais rápido que eu esperava. Eu posso entrar?

Abriu a porta desconfiado, uma dúvida o incomodava: esse senhor foi humilhado, é natural que tente uma vingança, e há muitas pessoas que matam barato. Orlando conhece dezenas delas.

Detetive: Sua mãe está em lugar um pouco longe daqui.

Estava óbvio demais. Por um instante, considerou a hipótese de chutá-lo para fora. Fora estúpido. Regra número um: nunca confie em alguém que te enganou.. Ligou o carro.

Detetive: Dobre aqui... Vamos até o final desta estrada.

Eles entraram em uma estrada de chão. Uma paisagem bucólica e abandonada se abria aos olhos de Orlando. Se estivesse de férias, admiraria o verde da montanha, a água cristalina descendo melodiosa pelo riacho, se sentiria tocado com a dignidade no olhar doce dos poucos moradores, em suas humildes casas. Mas para ele, esse cenário era o enredo da traição. Enquanto seguia pelo caminho indicado, com o detetive insistindo para diminuir a velocidade, procurava atrás de cada rocha, entre as árvores, alguém escondido, com a arma engatilhada e a mira feita. Se estivesse no banco do carona, faria assim, pois toda a humilhação exige uma reação.

Detetive: Pare! É aqui.

Orlando olhou para o encardido muro de entrada, coberto por pichações adolescentes – From Stª Rita das Flores to hell... Depois mirou para a inscrição no arco do portão: Asilo Michel Foucault.

Orlando: O que é isso?
Detetive: O que o senhor imagina?

Um hospital psiquiátrico. O mundo é um hospício.

No interior do asilo, a diretora os esperava na recepção. Ela vestia uma calça jeans surrada e uma hering branca, cabelo longo grisalho desgrenhado, parecia uma guerrilheira dos tempos de Medici. O detetive conversou a sós com ela durante alguns minutos, tudo cheirava a outra farsa. Em seu íntimo, Orlando desejava isso: outra encenação, outra quebra de dentes, outra oportunidade para encontrar a verdade confortável. Ao invés disso, a diretora se aproximou dele segurando um caderno de capa dura.

Diretora: Há três anos não recebe uma visita... Ela foi internada aqui pelo marido, assinou todos os protocolos, e nunca mais voltou. Quer conferir os dados?

Orlando conferiu o único documento existente sobre a paciente: Virgínia Maria Assis de Alencar. Tudo batia, o local e a data de nascimento, o nome de seus avós maternos.
Diretora: Sua certidão de nascimento é o único documento...

Não havia dúvida.
Orlando: È a minha mãe.

O coração do filho batia forte, o corpo inteiro tremia.

Orlando: Onde ela está?

Antes de responder, a diretora comparou os dados pessoais de Orlando com os da paciente, e só fez isso porque tinha antipatizado com ele. Feito o preenchimento dos protocolos, ela o encaminhou pelas dependências do asilo até o jardim. Sob a sombra da mangueira, uma mulher de rosto magro gesticulava no vazio como se regesse uma orquestra.

Diretora: Pode ficar a vontade...

A diretora e o detetive voltaram para a recepção. Orlando tomou pelas mãos o rosto indiferente da moribunda. Os olhos, o desenho dos lábios e as mãos, tudo familiar. Havia uma única dúvida.
Orlando: Mãe...

A mulher o olhou com uma expressão vazia e dopada.
Louca: Quem é você?
Orlando: Sou seu filho...
Louca: Filho?!? Qual? Eu tenho tantos... Está vendo aquele macaco, é meu filho! E aquele falcão voando no alto, é meu filho! E essa formiga...

Ao lado da mulher havia uma toalha estendida e maçãs repletas de formigas. Ela pegou duas delas e as comeu. Ao ver essa cena, o coração de Orlando gelou de pavor e nojo. Ele tomou o fruto da mão materna, soprou para longe todas as mordedoras até deixar a fruta limpa.

Louca: Seu burro!

A mãe jogou para longe a maçã.

Louca: Eu uso a maçã para atrai-las... As formigas! Huumm... Elas são deliciosas...

E soltou um riso insano...

Louca: São crocantes... Delícia! Delícia!

Orlando pegou as frutas e as lançou longe. Descontrolada, a mãe o agrediu com pontapés e palavrões, depois enfiou os dedos no solo retirando enormes pedaços de raiz de grama, os quais devorou até engasgar. Os enfermeiros chegaram, a amarram e aplicaram uma injeção. A diretora correu em direção ao filho aflito.

Diretora: Deixe! Não há nada que você possa fazer agora.

Após ver sua mãe sedada em uma cama, ouviu a longa explicação psiquiátrica da diretora. E ainda mais: as dificuldades financeiras para manter a casa de repouso, o desinteresse dos familiares, e etc e etc e etc. Assinou um cheque considerável com o coração sangrando. Depois assinou outra folha para o detetive...

Orlando: Isso é pelo seu silêncio.

Antes de partir, deixou com a diretora seus números privados:
Orlando: Me ligue semanalmente... Vou enviar um psicólogo particular... Alguma oposição?
Diretora: Não, senhor!

Entrou no carro sentindo um conflito de emoções, tristeza profunda misturada à revolta, sensação de desilusão e alívio. Havia atingido o objetivo desejado. Mas o troféu ardia em suas mãos. Quando finalmente as lágrimas brotaram em seus olhos foi com raiva. Pegou o celular à procura do número do psicólogo associado à Ordem, sua fama é notória, dizem que é um mestre da hipnose, seu nome: Pedro Cigano.

(a seguir: uma noite quente com Diana).

3 comentários:

  1. quero convidar os leitores e fiéis seguidores desse blog para o lançamento do meu livro - "mário e oswald: uma história privada do modernismo" - dia 11 de setembro, a partir das 19h, na Casa de cultura, av. rio branco.
    espero todos lá!
    valeu.

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  2. Esse capítulo foi pesado, hein? Me lembrou "Um estranho no ninho"...
    Aguardo ansiosa a noite quente com minha personagem favorita!!!

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  3. Olá, Anderson! Muito bom o seu blog: vou adicioná-lo no meu (www.jornadasdoeusozinho.blogspot.com). Parabéns!! Aproveite para me fazer uma visita e participar da enquete que promovi por lá: as cinco melhores cenas da literatura nacional. Dê o seu pitaco também!
    Voltarei sempre por aqui.

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