quinta-feira, 15 de julho de 2010

Malditos - Cap. XXIII

Alguma coisa está fora da ordem


Os últimos dias foram tensos.

Orlando se aprofundou nos fundamentos sobre a Ordem, em especial os estatutos. Em determinado momento, precisou de um professor de aramaico. Para seu espanto, o mestre indicado fora seu antigo professor de direito romano. Somente uma vez interrompeu seus estudos, quando a médica-chefe do Asilo Michel Foucault ligou.

Médica: Sua mãe quer falar com você.

Desligou o telefone. Eva estava ao seu lado, no sofá, muito curiosa sobre a breve conversa telefônica.

Eva: O que aconteceu?

Nada respondeu. Andou alguns passos perdidos pela sala, até iniciar titubeante a seguinte confissão:

Orlando: Seguindo os princípios da Ordem, não deve haver segredos entre nós.
Eva: Assim exige os mandamentos.

Pela Ordem, nenhum casal deve se consagrar sem antes se confessar um para o outro. Nenhum casal receberá a dádiva sem verdade.
Após o bang-bang sem mortos na casa do primo, Eva se revelou. Ela imaginou uma reação violenta do marido, afinal, não poderia lhe dar filhos. Ele apenas disse: “Isso não importa mais”. Por que não? Tinha outra mulher, Diana, que poderia lhe dar tudo, menos o que mais queria. Eva sabia.

Ao contrário de sua mãe, avó e bisavó, mulheres submissas, ela havia escolhido o homem com quem se consagraria. Foi por isso que a esterilizaram? Tantas questões. E ele ainda não disse nada.

Orlando: Eu menti para você... Minha mãe está viva... E não bate muito bem das idéias.

Eva engasgou. O que isso significava?

Eva: O meu pai já sabe?

Pensava: "em o que mais os dois são cúmplices, afinal, já dividem a filha e a amante".
Eva: Você me disse que seus pais estavam mortos.

Para alguém como Orlando ser admitido na Ordem, precisa ser filho único e órfão de pai e mãe.

Eva: Desde que nos conhecemos, há mais de nove anos, disse que seu pai e sua mãe estavam mortos! Eu lutei para que a minha família te aceitasse... Sabe por quê?
Orlando: Para não criar vínculos familiares fora da Ordem...
Eva: Você tem algum irmão?

Estava transtornada. Seu primo tinha toda a razão. Orlando era um mentiroso. Ela, uma tola. “Uma Lady Macbeth falida!”.

Eva: Você passou os últimos meses estudando os fundamentos da Ordem....
Orlando: Por que ficou tão nervosa?
Eva: Por quê? Porra, até ontem, seus pais estavam mortos!
Orlando: Minha mãe estava desaparecida há vinte anos. Em termos legais, tanto poderia estar viva quanto morta. Eu contratei um detetive para encontrá-la... Em um hospício. Pedro Cigano está tratando dela agora...
Eva: Aquele bruxo!
Orlando: Ocultista.
Eva: E meu pai sabe?
Orlando: Nos já conversamos. Encaminhei um ofício para os membros decanos examinarem, está tudo nas mãos deles, têm dois dias para decidir se aceitam um estrangeiro como eu. Agora, preciso ver a minha mãe.
Ainda tonta com a revelação, Eva se levantou e segurou o braço do marido.
Eva: Por favor, não vá!

Ele se libertou.

Orlando: Eu tenho que ir.

Acelerou para o manicômio. Ao chegar lá, foi recebido na porta por Pedro Cigano: “Ela lembrou o seu nome”. Rapidamente foi conduzido até a presença da mãe. Sentou-se ao seu lado e a pegou pelas mãos. Ela olhou para ele e disse:

Mãe: Orlando, meu filho... Você conhece?... Orlando, meu filho.... Você conhece?

Ele a abraçou e sussurrou:

Orlando: Sim, eu o conheço... Posso garantir, o conheço melhor do que a senhora.

Depois correu suas mãos pelos seus cabelos até o pescoço. Nesse momento, um pensamento mórbido passou pela sua cabeça. Poderia estrangulá-la. Não haveria mais nenhum impedimento para a realização da cerimônia.

Orlando: Minha mãe... Eu poderia te estrangular... Mas não sou assim, um personagem tão vulgar... Sou seu filho.

Após se despedir, conversou a sós com Pedro Cigano.

Orlando: Posso considerar isso um quadro de evolução?
Pedro Cigano: A evolução é lenta... Agora, nós podemos conversar sobre o impasse envolvendo a cerimônia.

No caminho de volta, no banco do carona, Pedro Cigano debateu a questão sob diversos ângulos. Para ele, os altos membros aceitarão o pedido de admissão, mesmo sob o não cumprimento total de um dos artigos da doutrina. Enfim, agiriam assim de qualquer forma, pois a própria origem de Orlando já é uma subtração à Ordem.

Pedro Cigano: Você significa transformação, meu caro... Toda a renovação vem de fora... E não há mudança sem superação de velhos preceitos. A ordem sempre nasceu do caos.

Orlando pensou consigo: “A ordem é uma bagunça.”

Infelizmente, Orlando perdeu a reunião que os altos membros decidiram o seu destino. A principal testemunha a seu favor foi a primeira a depor – o próprio Pedro Cigano. Dissera que a mãe de Orlando vivia em estado catatônico, ou seja, “era uma morta em vida”. Imediatamente o Senador decretou o veredicto: “Morta em vida, morta no além, dá no mesmo... A lei precisa ser mais flexível... O rapaz foi honesto... Que a cerimônia se realize”. O Senador soltou o grito e todos o seguiram, mas sem a mesma alegria infantil, porque acima de todos, ele simplesmente adora a festa de consagração... que só acontece de sete em sete anos.

Somente um não comemorou entusiasticamente, Alexander C. Shelley, o sogro de Orlando.

Shelley: Há outra questão que precisamos votar. Orlando apelou para o direito de excluir um antigo membro da cerimônia.

Todos gelaram. Silêncio tumular. Por que ele não havia dito isso antes de votarem? Muitos pensaram: “Calculista”.

Senador: Quem?
Shelley: O meu sobrinho, Elias.

Todos respiraram aliviados, a excitação voltara como um tsunami. Trocaram rápidas palavras entre si: “Não é tão importante”. “Não esteve presente na última cerimônia”. “È depressivo”.

Shelley preocupado coçava a testa. Ninguém mencionou a relação de Elias com a sobrinha do inspetor. Mas, no fundo do peito, sentia a exclusão de um membro de sua família, mesmo que fosse substituído por outro, era o seu sobrinho, sangue do seu sangue.

Nos últimos dias, Elias se fechou paranóico em casa. Ele vasculhou cada centímetro em busca de outras escutas. A princípio, o empregado quis ajudar, mas tão logo percebeu a gravidade do estado mental do patrão, tentou dissuadi-lo, sugerindo uma viagem. A negativa do patrão foi ameaçadora. Então, resignou-se a vê-lo desmontar os móveis e os aparelhos elétricos, a quebrar as paredes. A casa inteira estava destruída, era impossível anda sem pisar em um pedaço de reboco, lascas de madeiras, ou tropeçar em fios. A situação no banheiro social era particularmente precária, dois canos furados jorravam água até a cozinha.

Enquanto consertava o vazamento, o mordomo lamentava quieto o estado desolado do patrão: sentado na varada, um copo de uísque na mão e uma arma na outra.

Há duas horas se encontrava nessa posição. Desde que recebera uma correspondência, um envelope branco com o lacre da Ordem. Enquanto limpava a casa, vez por outra, o mordomo dava uma olhadinha no patrão. Elias lia e relia o documento, um simples ofício de uma página. Finalmente, levantou. O mordomo pode ouvi-lo: “Agora basta!”. Ele entrou no seu quarto, levando a garrafa, a carta e arma, trancou-se.

Duas vezes bateu na porta, perguntando se precisava de alguma coisa. Não ouviu resposta. Após três horas, o empregado pegou o telefone e ligou para a jovem Ana. Ela foi imediatamente para lá. Assim que o mordomo lhe abriu a porta, tomou um susto.

Ana: Parece que um furacão passou por aqui.

O mordomo mal pode explicar toda a situação quando ouviram um som vindo do quarto.

BANG!

Ana: Naaãooo!!!

Em pânico, o mordomo arrombou a porta e encontrou seu patrão deitado no chão. Sua mão esquerda sangrava, havia um buraco à bala no meio dela. Ao vê-los, Elias lançou um olhar insano e perdido. Com a voz trêmula, dizia: “que a cerimônia se realize”. E riu histericamente.


(a seguir: this is the end, my only friend, the end)

2 comentários:

  1. Quando li esse BANG! me assustei. Achei que tinha me enganado quanto ao Elias... tive que respirar pra seguir em frente.

    Sabia que ele não era tão corajoso assim... Ainda bem que tinha mais um parágrafo pra concordar comigo hehehe

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  2. Ow,sua caixa de e-mails tá cheia. Tô tentando te dar notícias de "além mar", mas não consigo! E o proximo capítulo,cadê?
    Bjs

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