domingo, 1 de março de 2009


MALDITOS


Prólogo


Qual é o prêmio dessa luta feroz chamada vida? A felicidade. Quem não quer ser feliz, mesmo que isso seja uma batalha sangrenta? Mas existem aqueles que querem mais.

Astrólogo: Maestro! Fiz e refiz os cálculos, as estrelas não estarão alinhadas...

Ele prefere ser chamado de “maestro”. Somente seus exímios músicos imaginam o sentido da composição, a ópera reconciliadora com o paraíso.

Astrólogo: Talvez seja melhor adiar a cerimônia?

Sua voz é lenta e grave. O raciocínio rápido como uma serpente. Ele veio de um lugar distante. Conhece muitas pessoas, e cada uma o chama por um nome diferente.

Maestro: A cerimônia deve ser realizada, talvez nos ensine um ritmo novo.


Capítulo I
O ambicioso

Orlando abre outro chiclete, faltam poucos dias para o ritual de sua consagração, a cerimônia. Inesperadamente, sente uma estranha e confortável sensação de fuga. Ele retira outra goma, pensa em ligar para o fabricante do adesivo antifumo, pois não está funcionando como devia. Olha para o relógio, ainda tem alguns minutos antes da reunião.
No elevador, voltou a pensar sobre a verdadeira natureza da cerimônia. É um teste de resistência? Qual o propósito da abstenção do fumo, do álcool, do sexo? Ou é um teste de vontade? Força ou potência?
A porta do elevador se abre para sala onde seus clientes o aguardam. A secretária o guia até o grupo. Seria melhor não ter prestado atenção à malícia de seus olhos. Impossível. O teste. A prova de resistência. Entrou na sala, deixando a secretária com a sensação de ter sido ignorada, mas que tipo de homem a ignoraria? Como urubus ao redor da carniça, seus clientes avançam em sua direção.

Empreiteiro: Espero que comprove a confiança depositada no senhor...
Orlando ouvia e pensava: “Ele fala mais alto, grita, gesticula como um boi lutando contra o abate final. É o mais burro”.

Empresário: Esta é maior obra dessa cidade... O prefeito precisa de um aval para assinar a licitação... Não é possível que uma comunidade de pescadores atrapalhe tanto!

“Agora falou a raposa. Ele emposta a voz. Por quê? Talvez seja enrustido. Talvez eu deva chamá-lo rapouso”.

Arquiteto: O projeto urbanístico está pronto, podemos começar amanhã.
“Por fim, o cordeiro. Chego a ter pena deles, porque eu sou uma serpente: devoro o boi, pico a raposa e enveneno o cordeiro”.

Orlando: Vocês não souberam lidar com esse ambientalista. Ele se transformou em uma figura midiática. Já deu entrevistas para jornais, rádio, tvs. A pior conseqüência disso foi ter chamado atenção para o nosso projeto. Desde o início concordamos que agiríamos em silêncio, nas sombras. Para finalizar, aparece essa acusação de suborno aos funcionários do Ibama.

Empreiteiro: Ainda não tem nada comprovado. A mídia só está fazendo barulho!

Orlando: Com a sua voz gravada ao telefone.

Empreiteiro: Não tire onda com a minha cara! Fale como homem, e não como uma bichinha engomada.

Se há algo que tira Orlando do sério é ser chamado de “bicha” ou qualquer variante. Até brigar, já brigou. Mas agora vivia seu período de provação. Autocontrole e firmeza.

Orlando: Com todo o respeito, o senhor agiu sem pensar. E não negue que aquela não é a sua voz. Ao menos que queira duvidar da competência dos técnicos da Unicamp?

Empresário: Talvez seja melhor adiarmos a construção, deixar a coisa esfriar...

Empreiteiro: Você está delirando! Venha cá... Vamos conversar um momento a sós.
Os dois sócios se retiram para o banheiro. Orlando olha para a direita, o arquiteto para esquerda, ambos fingem desinteresse, enquanto do reservado escapam algumas palavras, notas de uma composição óbvia para ouvidos atentos. O empreiteiro é Tim Maia: “é minha última grande chance, vamos pressionar”. O empresário é João Gilberto: “Não podemos perder o controle da situação”.
Voltaram à sala visivelmente em desentendimento. O empreiteiro suava, abria os botões da blusa até saltar uma massa de gordura sobre o cinto. O empresário, sem nenhuma mancha de suor, aliás, muito magro, tomou a palavra.

Empresário: Eu e meu sócio chegamos a um impasse. Diante de todos os acontecimentos, da considerável soma injetada pela instituição a qual o senhor representa, acho prudente esperar a poeira baixar.

Orlando: Por quê?
Empreiteiro: Se empurrarmos o empreendimento, quais são as garantias de que não procurarão outra construtora?

Orlando: Nenhuma. Particularmente, os senhores estão agindo como amadores, sentimentais. Amadorismo e sentimentalismo são características que não combinam nesse tipo de empreendimento.

Empresário: O senhor está dizendo que devemos começar as obras? Com pescadores acampados na área, gente armada, grupo de ambientalistas, jornalistas... Você está louco!

Orlando: Esse ambientalista se transformou numa pedra em seus sapatos, porque conquistou a opinião pública.

Empresário: Olhe esta foto, no principal jornal da cidade, é assim que a população o vê...

Arquiteto: O rosto, o cabelo, a barba... A reportagem o compara a Tiradentes!

Orlando: E se revelarmos seu outro lado, o negativo?
Empreiteiro: O que o senhor está dizendo, exatamente?

Orlando: Vamos aguardar os próximos dias: mantenham a calma, sem atos desesperados, vamos dar andamento às questões de ordem jurídica, porque aqui a maré está a nosso favor. Boa tarde.
(continua)

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