sexta-feira, 1 de maio de 2009

malditos - cap. VIII

Almas gêmeas

Agora são dezoito horas e trinta minutos. O céu vermelho de outono enegrece. O vento frio balança as cortinas das poucas janelas abertas. Os fantasmas chegam com a noite. Elias está sentado no centro da sala de sua cobertura. Ele vê as luzes da cidade se acendendo junto com o primeiro brilho das estrelas, a consciência voltada para o passado. Em suas mãos, o retrato da esposa. Ela está radiante. Dezoito anos. Verão na praia. A foto foi tirada no dia em que se conheceram. Eternamente linda. “Qual o seu nome?”. “Anita”.

Elias e Anita eram primos, mas nunca tinham se visto até aquelas férias. A família conspirou para o encontro. Os longos passeios à tarde, as expedições em busca de lugares exóticos, às noites regadas a vinho e violão. Ela adorava sua voz e foi conquistada por aquela doce melodia. Ele se sentiu imediatamente atraído pela beleza e desafiado pela inteligência da prima. Era perfeita.

O pai de Elias, um homem muito apegado aos costumes, era um ferrenho defensor da união entre parentes, para manter o sangue familiar limpo. Era bom que o filho homem casasse cedo, pois devido às suas tradições, deveria contar com a confiança absoluta da esposa, tal comprometimento não se consegue na união fora do restrito círculo. Há uma série de complicações: pertencendo a uma outra classe, também pertenceria a outro sistema religioso, o que implicaria em outro sistema moral. Para aceitá-la, precisaria se converter. Mas sobre o convertido sempre pairam desconfianças, a principal diz respeito à lealdade, pois se foi capaz de abandonar suas tradições para adotar outra, qual garantia de que não fará outra vez? Desde os dez anos, o filho ouvia esses ensinamentos, e nunca duvidou.

O casamento foi festejado durante dois dias e três noites. Após a lua-de-mel, o casal dedicou seus primeiros sete anos de união ao cumprimento dos deveres para com a tradição, estavam ansiosos para realizar as obrigações espirituais e viver livres.

No sétimo ano de casamento, Elias entrou para a lista dos dez cantores mais ouvidos do país. O preço do sucesso foi as longas ausências de casa. Anita estava grávida. A gravidez, contudo, foi conturbada e dolorosa. A esposa sentia a falta do marido, que vivia viajando de cidade em cidade. Sentia-se abandonada. A família tentava esfriar a situação, esse era o trabalho dele, o sustento da família. Diante desse quadro, com todas as cores da tragédia, Elias decidiu encurtar a turnê. Seu empresário tentou dissuadi-lo, temia o desgaste prematuro da imagem. Mas o motivo, no final das contas, foi entendido pelo público como um ato nobre. Isso só aumentou seu fã-clube.

A criança nasceu sadia. Uma linda menina. Rita. Durante o primeiro ano de vida de sua filha, Elias montou um estúdio em sua casa, escreveu uma série de canções para violão, guitarra, percussão e piano. As canções foram lançadas no álbum O mito de Sísifo. A crítica considerou o disco “sublime”. O público o abraçou como abraçamos parentes distantes.

Já Anita... Vivia no inferno. Os médicos chamaram de “depressão pós-parto”. A mãe tinha aversão pela filha, parecia sentir medo dela. Elias ouviu dos psicólogos vários relatos semelhantes. A causa para o distúrbio, quase sempre, se originava a partir de algum trauma durante a gravidez. Apesar do esforço dos terapeutas, mês após mês, Anita evitava ao máximo o convívio com a filha.

Em meio aos preparativos para sua volta aos palcos, Elias lutava para manter sua família integrada, a batalha ficou mais violenta quando Anita lhe propôs o divórcio. Ela só poderia estar louca. E não apenas o marido, mas o sogro e a sogra pensaram interná-la.

Anita parecia uma ruína. O olhar radiante virou uma expressão perdida e vazia. Uma magreza anoréxica tomou conta dos seus músculos. Vivia trancada em seu quarto, só saía de lá quando tinha certeza que a filha não estava. Nesses momentos, ia para o jardim, caminhava entre as plantas e conversava com o vento. Todos se perguntavam por que razão chegara a esse ponto. Só ela sabia a resposta. A ventura sempre cobra um sacrifício.

Há dois anos, Elias chegou em casa após uma caminhada matinal. Perguntou a um empregado sobre a filha, já que não a encontrava em nenhuma parte da casa. “Ela está caminhando com a mãe pelo jardim”. Ao ouvir essa frase, o coração do pai gelou. Ele as procurou por cada canto verde do bosque em volta da mansão. Quando as encontrou: Ritinha estava de pé, segurando a barra do vestido da mãe, pendurada inerte no ar por uma corda em volta do seu pescoço. A pequena, ao vê-lo, disse: “Papai, a mamãe não quer descer”.

Desde o primeiro momento, quando seus músculos paralisaram e um clarão cegou seus olhos, Elias nunca entendeu a trágica cena. . Por quê? Ele vem se perguntando. Por que ignorou os sinais?

Uma noite, antes do desesperado ato, Anita acordou o marido e falando baixo, como um assassino, o puxou pelo braço até o quarto da filha. Ela dormia como um anjo iluminado pela lua. Apontando para criança, a mãe lhe disse: “É a culpada”. Quase não ouvia sua voz, como se suspeitasse ouvintes invisíveis. Passado o espanto, Elias analisou friamente aquela situação, o contraste entre a inocência e a loucura. Intimamente, escolheu a primeira. Não restava mais dúvidas, conversaria com os familiares e a internaria em uma clínica de confiança.

Após o suicídio da esposa adorada, Elias mergulhou em uma profunda depressão. Foi Pedro Cigano quem começou a resgatá-lo. Ele apareceu indicado pela Ordem, com a objetiva missão de guiá-lo de volta à luz, como Virgílio guiou Dante.

Agora encontramos Elias aqui, sentado em sua poltrona, com a fotografia da amada nas mãos, disposto a mais um sacrifício para trazê-la de volta.

Subitamente, a governanta surge na sala para anunciar a chegada de um convidado.

Governanta: Elias, o sr. Pedro Cigano está na portaria.
Elias: Peça para subir.

Ele retira a foto do porta-retrato, a dobra e a coloca no bolso da calça. Vai até o bar e se serve de uma dose de uísque. Enquanto isso, a governanta recebe Pedro Cigano e Ana, a condutora, e os leva para a sala. Ana carregava no seu colo um gato branco. Mas o que chamou a atenção da serviçal foram os anéis nos dedos do Cigano.

Pedro Cigano: É quase meia-noite, está pronto?
Elias: Estou.

Elias não conseguiu esconder seu espanto com o gato. Ana percebeu e logo tratou de esclarecer.
Ana: É meu animal de estimação, quero que vocês cuidem dele.
Elias: Vou pegar as chaves do carro.

Ele preferiu ir dirigindo até o cemitério onde sua mulher está enterrada. No caminho, Pedro Cigano explicava os pormenores do ritual de transmigração de almas. Pelo espelho retrovisor interno, Elias observava Ana e seu gato. Havia em seu íntimo uma satisfação pelo fato dela ser tão bonita. Por outro lado, não conseguia compreender como alguém tão jovem se dispõe a querer viajar para o reino dos mortos. Outra suicida. Talvez essa fosse a simetria necessária para o ritual.

Eles param na entrada do cemitério. Pedro conversou com o vigia, que abriu os portões. Faltam cinco para meia-noite. Caminhando entre os túmulos, o Cigano questionou Ana.

Pedro Cigano: Quando sua alma abandonar o corpo e penetrar no reino dos espíritos, será uma viagem sem volta. Pela última vez lhe pergunto: é sua vontade?
Ana: Sim.

Os três pararam diante do túmulo de Anita Augusta Soulbley. Meia-noite. A cerimônia nigromântica se inicia. Antes de ser despida e preparada, Ana passa o gato para Elias. Acariciando o animal, ele acompanha a condução do ritual. Pedro Cigano pronuncia palavras em uma língua que para Elias é latim, mas na verdade é aramaico. Á medida que as palavras são pronunciadas com intensidade e fervor, Ana entra em transe, suas pálpebras se movimentam freneticamente. Tomado pela apreensão, Elias aperta a pele do gato. O corpo de Ana treme. Então, subitamente, o animal salta dos braços de Elias para o túmulo de Anita. Tomado de fúria, o felino se autoflagela. Em um movimento louco, o gato crava suas garras sobre a barriga, as pernas, até chegar ao pescoço e rasgá-lo em um corte fatal. O sangue escorre através do pêlo branco formando um estranho desenho sobre o mármore.

Pedro Cigano olha para Elias.

Pedro Cigano: O ritual foi realizado.

Elias chega perto do corpo de Ana, a segura pelos ombros e num misto de apreensão e medo...

Elias: Anita... Anita...
Ana: Ela não está aqui. Sinto muito.
(a seguir: Parafuso entra em parafuso).

7 comentários:

  1. a todos os leitores de "malditos", lamento o atraso na postagem, e agradeço a todos pelos comentários... let's go crazy!

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  2. "Por onde andará [essa Anita], que andava gingando com laço de fita..."?

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. A menina segurando e mãe morta pelo vestido e o gato da Ana se matando ficaram ótimos...

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  5. A mãe virou quase uma pipa morta.... adorei!!!!!

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  6. sapo seco
    galinha preta
    coruja num tem bigode
    livrai-nos da catingueira do bode!

    Saravá!!

    sacode a erva pra dar certo a pajelança!!!

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  7. Estou colocando em dia a leitura!
    Simplesmente delirante.

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