segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Malditos - Cap. XVII

Retalhos


Elias: Troque o alvo!... Distancie mais... Mais... Ok.

BANG!

Treinador: Na mosca! Hoje você está impossível.
Elias: Distancie mais sete metros. Vou experimentar o rifle.


Enquanto checava a arma, a mente de Elias mergulhou no passado. Ele tem treze anos, seu pai o ensina, pela primeira vez, a manusear o Rossi, a firmá-lo corretamente no ombro para amenizar o coice do tiro. “Nós somos uma família de caçadores, meu filho!”. O hábito de caçar é uma herança duradoura entre seus familiares, talvez tenham sido os maiores exterminadores da onça parda na mata Atlântica.

Agora, caçar é uma atividade criminosa. Por isso, criaram o Clube do tiro, para simular a velha sensação. Elias é um exímio atirador. Quando se sente angustiado, vem aqui praticar. O tiro exige concentração, clareia a mente. E tudo que precisa é um pouco de silêncio, ainda mais depois das sementes que Ana plantara em sua consciência.

BANG!

No deserto, o Astrólogo desenha sobre a areia os símbolos do infinito e do acaso. Longe dele, o Maestro se aproxima do abismo, para melhor ouvir os músicos executando sua sinfonia. Que a cerimônia comece!

BANG!

Em sua casa, sentado no sofá da sala, Orlando lê distraidamente os jornais. Sua esposa está sentada em outro sofá, com uma revista de decoração nas mãos, mas apenas para disfarçar e espiar o marido. O que ele está pensando? O que conversa tão sigilosamente com seu pai?

Alheia aos dois, a menina brinca com seu carrinho das Super-espiãs, e ela é a mais audaciosa, a mais corajosa, seu carro salta sobre a televisão, o sofá, o tapete...

Eva: Assim você cai, filha.

Orlando olhou espantado para esposa, o gesto de cuidado com a criança, o rápido abraço de proteção. Ele amassou o jornal, pegou a mulher pelo braço e a levou para o quarto, fechou a porta.

Orlando: O que foi aquilo?
Eva: O quê?
Orlando: O modo como agiu...
Eva: Ah, por favor, ela iria cair...
Orlando: Você disse “filha”.
Eva: Isso é normal, um jeito de falar, não quer dizer...
Orlando: Quando a adotamos, concordamos que não a trataríamos assim, não desenvolveríamos sentimentos paternais! Você sabe o perigo disso!

Eva estava chegando ao seu limite. Há vários meses, uma angústia silenciosa e aguda castiga seu coração, provocando incerteza e calafrios. O comportamento cheio de mistérios do marido só piora a situação. Ela respira fundo, fala mastigando as palavras:
Eva: Eu não sei até onde agüento... Não assim, com você me tratando desse jeito agressivo...

A melancolia e o meio tom desesperado de sua voz o atingiram em cheio, despertou a compaixão guardada a sete chaves. Ele a pegou pelas mãos. Sentaram-se na beirada da cama. Com a voz clara e calma, começou:

Orlando: Preciso te confessar algo.... Preciso da sua sabedoria, como sempre tenho precisando... Quero te contar algo sobre minha mãe.

BANG!

Os dias passam, o inspetor Benedito e seu assistente seguem os passos do Sr. Shelley. Nesse ponto, o inspetor é um mestre. Seus colegas o chamam de “homem-invisível”, devido a sua exímia habilidade de ocultar-se na paisagem. Agora, eles se encontram a poucos metros da casa de Diana. Shelley a tem visitado regularmente. Benedito registrou cada visita em sua caderneta, o dia e a hora. E a cada visita, tem demorado mais. Após a anotação, fechou a caderneta e aumentou o volume do som, afinal esta era a sua preferida do vasto repertório de Bob Dylan.

And you know something is happenig here
But you don’t know what it is
Do you, mister Jones ?


Assistente : Pô, não tem outro cd? Esse cara é chato demais!

BANG!

Enquanto isso, no deserto, o Astrólogo termina o desenho das constelações na areia. Os cálculos foram vistos e revistos, dificilmente as estrelas se alinharão. Durante meses buscou uma explicação para o fenômeno, encontrou uma plausível no deslocamento de Plutão – por exemplo, os astrônomos descobriram outro planeta cuja antiga órbita de Plutão ocultava. No entanto, o Maestro compreendeu a questão pela teoria da relatividade de Einstein, a qual interpretou de forma peculiar baseado na teoria do acaso. Seja como for, para o Astrólogo não resta a menor dúvida: a cerimônia não deveria ser realizada.

BANG!

Dois dias após revelar para a esposa o demente estado em que encontrou sua mãe, Orlando conversa com Pedro Cigano. Caminhando pelo jardim da Casa Michel Foucault, o emérito psicanalista e ocultista tenta explicar, ao apavorado filho, que talvez seja melhor não penetrar nas profundezas de uma mente perturbada, pois o resultado final pode ser um permanente estado catatônico.

Orlando: Gostaria que tentasse...
Pedro Cigano: No estado mental em que ela se encontra, mesmo a hipnose profunda não garante uma possibilidade segura de regressão.
Orlando: Eu li seu artigo sobre hipnose e condicionamento, se o entendi bem, é possível, em casos extremos de esquizofrenia, condicionar o comportamento do doente em uma personalidade específica.
Pedro Cigano: É uma hipótese. Através da hipnose, podemos condicionar a um comportamento específico, no seu caso, podemos condicioná-la ao papel de uma mãe protetora, ou seja, o seu desejo. Porém, se não houver o sentimento materno em seu espírito, ela reagirá a sua presença como um robô. É isso que quer?
Orlando: Eu quero que ela me reconheça!
Pedro Cigano: E aí está seu erro. Encare os fatos por outra perspectiva - ela deve te conhecer. Em seu relatório, a psiquiatra responsável aponta que, em determinados momentos, a paciente se comporta de forma lúcida.
Orlando: Li o relatório, em nenhum momento menciona que tenha se lembrado de mim.
Pedro Cigano: O passado é uma prisão e a mente de sua mãe está livre.
Orlando: Espero algo além de uma frase de efeito.
Pedro Cigano: Não se apegue à possibilidade dela o reconhecer como filho, concentre-se na possibilidade dela te conhecer como outra pessoa, como um velho amigo ou um amante.
Orlando: Eu quero saber por que ela me abandonou! Se não me reconhecer, nunca poderá responder.
Pedro Cigano: E o que fará depois? Vai abandoná-la aqui? Ou integrá-la a sua vida? Depois da cerimônia, seu poder e influência atingirão outros patamares. Imagine seus inimigos, agindo nas sombras, o que farão depois de conhecê-la? Não será difícil descobrir o amante. Como irá agir quando disserem que sua mãe foi uma vadia?
Orlando: Está me ofendendo...
Pedro Cigano: Pois bem, se eu, que selei um pacto de silêncio com você, te enervei... Imagine seus inimigos? Irão te desestabilizar emocionalmente. Reflita um pouco mais. Já a encontrou, está sob sua proteção. Mantenha uma visita regular, seja próximo, embarque nos delírios dela... Assim talvez encontre o que procura, mas não faça a busca a causa de sua ruína.

BANG!

Nos dias seguintes, Elias finalmente ligou para Ana. Os dois passaram a fazer longas caminhadas, ao final da tarde, sempre escolhendo a esmo o caminho. Nessas ocasiões, Ana lhe explicava a causa de seu rompimento com a Ordem, e como encontrou uma nova orientação.

Ana: Nós vivemos em um mundo ainda ignorante e arrogante. Nós pedimos bem-estar e recebemos riquezas medidas apenas pelo ouro. Todas as promessas são cumpridas, e nós ganhamos, mediante nossos sacrifícios, sucesso e dinheiro. Nós não passamos fome, não temos patrões. Por isso, acreditamos que somos livres. E aí está a nossa fragilidade. Apesar de toda a nossa "riqueza e liberdade", não encontramos uma explicação confortável para as tragédias que nos aflige, agimos como cegos em um mundo de escuridão.

Elias ouvia essas palavras como um desesperado ouve o sermão do pastor. Pouco a pouco, começava a acreditar nelas. Em meio à melancolia que vivia desde a perda da esposa, os passeios com Ana arejavam o seu espírito. Um dia, ela lhe perguntou se gostaria de conhecer uma pessoa, o principal agente transformador de sua vida. Ele aceitou. No dia seguinte, foi apresentado a um sujeito baixo, com a pele do rosto roseada, a barba branca bem aparada, uma voz harmoniosa, cujo próprio sentido do nome aludia à boa palavra.

Elias: Foi um imenso prazer conversar com senhor... Benedito!

BANG!

(na próxima semana: Parafuso hesita).

2 comentários:

  1. a todos os leitores desse blog: feliz natal e um próspero ano novo.
    p.s.: ei kid, não esqueça aquele número

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  2. O que acontecerá com a pobre criança? =)

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