domingo, 3 de janeiro de 2010

Malditos - Cap. XVIII

Uma volta no parafuso


Orlando entrou no escritório carregando o adicional cobrado por Parafuso. Porém, havia o dobro de dinheiro na bolsa, mais uma passagem e um contrato de trabalho temporário. Chegou sem aviso e cinco dias antes do combinado. Diante disso, Parafuso só pensou uma coisa: “Ele descobriu sobre mim e Diana”.

Dormira mal, pouco menos de três horas, torturou seu coração a noite inteira com perguntas: o estado de sua mãe, seus sentimentos em relação à Eva e Diana, a realização da cerimônia.

Parafuso: Adiantou o pagamento. Por quê? Vai sair da cidade?

Assumiu um jeito irônico e desconfiando, uma máscara para esconder o sentimento de vergonha diante do amigo.

Orlando: Por que você não senta? Vamos conversar. Quero te propor uma coisa, na verdade, um pedido: saia da cidade por uns tempos, até a poeira baixar. Tem um bom dinheiro aqui para três meses de férias... no Caribe, se quiser.

Parafuso soprou a fumaça do cigarro pelas narinas.

Parafuso: Se eu sair da cidade, passo de testemunha a suspeito... É isso?

Orlando se levantou com um soco na mesa, girou pela sala bufando, esfolou alguns dedos na parede, rugiu:

Orlando: Você é meu amigo... É isso! Tem um contrato de trabalho aqui. Deixe seus telefones com a porra desse inspetor, quando te chamar, você vem.
Parafuso: Com que tipo de gente você está trabalhando?
Orlando: Porra, você sabe! Para eles, quanto menos pessoas para falar, melhor! Pensa nisso. O dinheiro está aqui. Porque eu não voltarei mais.

Orlando saiu da sala pensando: “Idiota!”. Às vezes, não basta fazer o bem para as pessoas, devemos também convencê-las disso.

Quando a noite chegou, foi a vez de Parafuso torturar a sua consciência insone com perguntas: será que quer me afastar de Diana? Ou haverá uma queima de arquivo? Passou horas com o retrato dos filhos nas mãos. Então, uma imagem gelou sua alma: os filhos chorando sobre seu túmulo. Ao nascer do sol, não tinha mais dúvidas.

Sua ex-esposa se assustou ao encontrá-lo em sua porta às sete. “Quero ver as crianças”. Brincou a manhã inteira com os filhos, depois explicou a viagem a trabalho, deixou uma boa quantia com a mulher e, ao sair, sugeriu que passassem algumas semanas na praia junto com os filhos – ela poderia ir se quisesse.

Voltou à oficina.

Parafuso: Camundongo vem cá... Vou te deixar responsável pela oficina...

Explicou ao braço direito todos os detalhes, exigiu o envio semanal dos custos, enfim, mesmo longe estaria de olho. Liberou todos os empregados mais cedo. Sozinho, olhou com satisfação cada centímetro de sua oficina. Nela via refletida o seu ideal de vida, a realização de sua autonomia.

Já caía o crepúsculo quando fechou o último portão. Porém, antes de entrar no carro, avistou um jovem estudante de farmácia, que há muito mora em um prédio vizinho à oficina. Ao vê-lo, um impulso o dominou, uma vontade irracional de homenagear os velhos tempos. O jovem entrava no elevador quando Parafuso o segurou pelo braço.

Parafuso: Vamos até o seu apartamento.
O morador se assustou e subiu inquieto até o seu andar. Muitos clientes de Parafuso são policiais, por causa disso, o estudante sempre desconfiou que ele pudesse ser um informe ou qualquer coisa do tipo. Entraram no apartamento. Parafuso olhou a bagunça em volta e disparou:

Parafuso: Por quanto você me vende um baseado?

Já mais relaxado, o jovem riu consigo mesmo.

Estudante: Acho que se enganou...

Parafuso lançou as mãos sobre o peito do moleque, que caiu de bunda no chão com um olhar assustado.

Parafuso: Tu vende maconha para essa galera toda aí... Por que não pode me vender um baseado?
Estudante: Calma, cara! Não tenho! Não sou traficante, sou estudante...
Parafuso: Vou sentar aqui, se você não me arrumar um baseado, vou ligar para um camarada meu, aí vamos ver... Não é possível que não tenha nada aí!
Estudante: Calma, cara! Nunca te fiz mal, meu pai até consertou o carro dele com você...
Parafuso: Então, por que não quer me vender um simples...
Estudante: Eu não tenho erva... Mas tenho uma coisa similar, uma raiz...
Parafuso: Tipo Daime?
Estudante: Não! O nome da raiz é Sulamericana... Os índios a usam misturada com café, por isso eu chamo de café sulamericana. É uma onda boa.

Parafuso olhou para o moleque e, de alguma forma, tentou esconder o seu ridículo. Agora, para não parecer mais maluco, convinha aceitar o café. Além do mais, queria fumar um cigarro. O acadêmico preparou a bebida.

Estudante: A gente costuma misturar com leite, para dar uma quebrada...
Parafuso: Puro! Não sou o tipo café-com-leite.

Antes do primeiro gole, Parafuso olhou fundo nos olhos do anfitrião:

Parafuso: Você não colocou nenhum tipo de veneno?
Estudante: Você é desconfiado pra cacete, hein!

Ele tomou a xícara das mãos de Parafuso e a virou em um gole. Logo após beber o café, tratou de se despedir:

Parafuso: Sinto muito pelo minha truculência... Você é um moleque bacana!

Antes de ir para “onde quisesse”, Parafuso deveria passar em Cabo Frio para assinar uma papelada na empresa, ou seja, “forjar um álibi”. Seriam horas dirigindo.

O café é realmente bom, uma onda de alegria, uma satisfação eufórica, na estrada deserta à noite, Parafuso sorria e aumentava o som, a onda é boa mesmo, quando entrou no perímetro urbano, ficou maravilhado com as luzes da cidade, como uma criança olha para tudo como novidade e se encanta, onde estavam os problemas?

O café é bom mesmo, quando saiu do perímetro urbano e mergulhou na estrada, cortando o interior e suas montanhas, as estrelas brilhando, um animal cruza o asfalto, mas que animal brilha daquele jeito? Parafuso olha para as cercas de arame farpado e parecem trabalhadores marchando, então começa a ouvir um assobio, parece um sussurro, vindo do banco do carona, a voz de Diana, dizendo: “Mais café! Mais Café!”. Espantado, fechou e abriu os olhos, à sua frente havia uma nuvem negra, se aproximando, se aproximando, até se revelar uma nuvem de corvos, que entram pelas as janelas abertas do carro, foi muito rápido, um segundo, até o carro capotar, capotar, capotar e só parar no tronco de uma enorme mangueira, e a cabeça de Parafuso bater definitivamente no vidro do pára-brisa e começar a sangrar.

(na próxima semana: Eu lhe disse que não queria vê-la em lugares sórdidos).

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