segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Malditos - Cap. XXIV

Sob o signo de plutão


Orlando arrumava seus trajes na mala, quando subitamente sentiu aquela estranha sensação de fuga, um canto de sereias distantes.

Eva: Orlando... Orlando... Orlando...

Muito distante.

Orlando: ... Perguntou alguma coisa?

Ela se aproximou.

Eva: Estava absorto...

Fechou a mala.

Orlando: Onde está a menina?

No quarto. Seus risos atravessam os cômodos junto com o vento na floresta lá fora. Sua ama, de joelhos, tenta ajeitar o vestido branco no corpo da sapeca: “Fique quieta! Assim não será um anjo”. A menina não agüenta, nem mesmo os beliscões a fazem parar de rir, até que, refletido no espelho...

Orlando: Já está pronta?
Governanta: Quase, senhor!

A velha severa para a criança. “Viu! Agora, se comporte.” Enquanto a vestia, tentava responder às inúmeras perguntas de sua pequena criada.
“Pra onde vamos?”
“Um lugar muito bonito, lá tem um jardim grande para brincar o dia inteiro”.
“E tem outras crianças?”
“Muitas!”
“E elas são anjos também?”
“Todas.”
“E demora muito pra chegar lá?”
Governanta: Se não me deixar terminar, demora.

Orlando fechava o bagageiro do carro, quando a menina e a governanta sentaram no banco de trás. Ao vê-las, Eva guardou o maço de cigarros, pensando: “Finalmente, vamos acabar logo com isso!”

Orlando entrou no carro, deu a partida. Setenta quilômetros até o local da cerimônia, uma estrada tortuosa até o sítio onde se realizaria a cerimônia. Ao entrar na avenida de acesso à saída da cidade, pensou em Diana.

Longe dali, Elias acordava de um sono sem sonhos. Olhou sem entender para o curativo na mão. Ana dormia ao seu lado. O raciocínio lento e confuso, resultado da combinação de álcool e morfina, aplicada pelo mordomo para operar a mão ferida. Procurou um relógio. Daqui a poucas horas. O tempo da hesitação já passou. Levantou da cama para tomar um banho. Ana o segurou pelo braço:

Ana: Descanse... Nada mais depende de você.

Enquanto isso, Orlando guiava com o pé leve no acelerador. A menina eufórica falando sem parar no banco de trás. Nem mesmo a governanta conseguia domá-la.

Eva: Por favor, cale a boca!

Nesse momento, o marido analisou a atitude da mulher. Sua mente mergulhou nos livros lidos durante sua iniciação, textos reveladores sobre a origem da Ordem.

Em 1909, na Inglaterra, sir. August C. Shelley, avô de Eva, entrou em desavença com o mago Aleister Crowley, líder da Ordem Estrela de Prata, a qual toda a família seguia. O motivo do rompimento foi classificado como uma “picuinha aristocrática”. Sir. Shelley acreditava que a crescente fama de Crowley, principalmente entre poetas mundanos, expunha a Estrela de Prata, situação inapropriada para uma ordem secreta. Desse modo, em 1911, a família Shelley mudou-se para o novo mundo, mais precisamente, para o Brasil. As más línguas disseram que fugiram com medo da ira de Crowley.

A família Shelley investia no ramo da nascente indústria metalúrgica e resolveu se expandir para os países americanos em processo de industrialização, com potencial para exploração de riquezas naturais. Não foi muito fácil convencer seus irmãos; para tanto, aliou à exposição precisa de dados geográficos, frases de efeito como: “O Brasil é o paraíso a ser explorado”.

Em seis anos em São Paulo, sir. Shelley assinou um contrato comercial com o governo federal, garantindo a exclusividade no fornecimento de ligas de aço para expansão da malha ferroviária. O êxito convenceu outra família dissidente da Ordem Estrela de Prata, os Soulthey, ligada aos Shelley por laços matrimoniais, a rumar para o país. O patriarca dos Soulthey era um mestre nos conhecimentos místicos. Segundo as más línguas, nutria profunda inveja de Crowley. Seja como for, nos primeiros anos residindo no Brasil, após explorar o mapa nacional, percebeu no sincretismo religioso um terreno fértil para plantar a semente de uma nova sociedade secreta: a Ordem. A partir daí, em pouco tempo, conquistou uma família portuguesa, cujos parentes haviam morrido na miséria em nome da Ordem de Cristo, os Oliveira Almeida, antepassados do Senador.

“Permita que me apresente: eu sou uma besta” – dizia o garoto de dezoito anos, o futuro Senador, sete dias após sua consagração. Aliás, essa euforia demorou uns dois anos para passar. Até aquele momento, nunca havia sentido tamanha força. E agora, aos sessenta anos, se ajeitando diante do espelho, sente aquela mesma euforia de garoto.

Muito se discutiu sobre manter a tradição da cerimônia, ou aboli-la já que viviam em um novo mundo... (E afinal de contas, o negócio era outro). Pesou a mão forte do sacerdote.

A origem do ritual remonta a 1666. A primeira cerimônia aconteceu como uma provocação ao Velho Testamento. Se Abraão sacrificou o filho em nome de Deus, os seguidores do Diabo também deveriam sacrificar os seus, e mais, todos beberiam o sangue de seus filhos. O sacrifício servia para honrar a devoção ao Bode. Mas o ser humano nunca está satisfeito em seu negócio com as divindades. O preço é sempre muito alto.

Ao migrarem para o novo mundo, os fundadores da Ordem manteriam a cerimônia de consagração, mas ninguém pretendia sacrificar um filho, ainda mais em terras novas como um imenso chão para expansão de suas riquezas. Discutiram sobre o sentido da morte do inocente. O ato demonstrava a ausência de amor, o preceito básico de Cristo. O amor estava simbolizado no cordeiro. Porém, isso não significava sacrificar os próprios cordeiros. Assim, refizeram o contrato com suas divindades. No novo continente, os devotos adotariam crianças para oferecê-las, de sete em sete anos, ao Bode. Para demonstrarem a ausência de afeto, as adotariam aos seis meses de idade, conviveriam com elas até os sete anos, quando as sacrificariam na missa negra.

O fator decisivo para permanência da cerimônia foi o seu caráter orgiástico. Ninguém sabe afirmar ao certo o início da associação sangue e sexo. Alguns relatos remontam ao antigo Egito, outros a Europa Oriental. Para os satanistas, a liberação das energias sexuais os sintonizava com as forças sobrenaturais. Logo, foram buscar o afrodisíaco mais potente - e desde os antigos egípcios, todo mundo sabe, é o sangue.

Consta-se que apenas um casal se arrependeu de cumprir o sacrifício e traiu os seguidores do Bode. O casal teve uma vida longa, muitos filhos, e cada um deles nasceu morto ou deformado. Além disso, a miséria os perseguiu até o último suspiro. Ninguém sabe ao certo se isso aconteceu ou se é apenas uma lenda para manter os fiéis.

Eva: Ah, finalmente chegamos... Você está preparado?

Na entrada do sítio, Esfinge, o porteiro, abriu as portas. Era uma fria noite de agosto. Ao fundo, os latidos dos dobermanns. Assim que saíram do carro, foram conduzidos para dentro do casarão. Seguiram por um longo corredor iluminado por velas vermelhas. Ao chegarem a uma bifurcação, Orlando foi levado para um cômodo à direita; Eva para outro à esquerda. A menina foi levada a outro cômodo. Embora tenha evitado encará-la durante toda a viagem, nesse momento final, Eva olhou para a inocente e pode sentir o medo nos olhos dela.

Quando voltou a vê-la, a menina estava no altar no centro do salão principal, deitada sobre uma mesa de madeira, amarrada pelas mãos e os pés. Eva estava ao seu lado, mas desviou o olhar para o lado, onde estava o sumo-sacerdote, o Maestro; ao lado dele, o Astrólogo. Abaixo do altar, estava Orlando, vestindo a túnica vermelha cerimonial. Atrás dele, formando um círculo, todos os membros da Ordem.

Aos primeiros sons da voz grave do Maestro, a menina começou a gritar. Um grito agudo, alto e dilacerado. O sacerdote seguia com o ritual, a mão direita segurava punhal. Os seguidores entoavam o cântico sinistro. Orlando imóvel com a cabeça abaixada, a túnica cobrindo seus olhos. A menina gritava e se debatia. Uma crescente angústia possuía o coração de Eva. Seus sentidos pareciam se despedaçar entre os ritos do Maestro e a dor na voz da menina. Por fim, vencida pelo arrependimento, ela olhou para os olhos desesperados da inocente. Nesse instante, viu um clarão, seguindo de um estrondoso barulho. Fechou os olhos.

O punhal que o Maestro segurava ainda girava no chão, quando Eva olhou para baixo e viu seu corpo caído, com o sangue escorrendo através de um buraco no meio da testa. À sua volta, todos espantados e imóveis. Então, entre os seguidores, próximo ao altar, viu um braço apontando uma arma e, com a outra mão, o autor do disparo retirando o capuz da túnica.

Elias: Tira ela daí... Vamos embora, agora!

Instintivamente, todos os seguidores deram um passo para trás, menos Orlando, parado sobre o círculo desenhado aos seus pés. Levantou a cabeça, afastou o capuz dos olhos e viu sua esposa agarrado a menina assustada pelos braços. Elias se movimentava mantendo todos sob a mira da pistola. Como poderia ter passado por Esfinge e seus cães, depois do veto a sua presença? Quem poderia ter permitido a sua entrada? Seu sogro levantou o capuz e encarou o genro e o sobrinho. Eva e a menina se escondiam atrás de Elias: “Vamos embora. Segue em frente”. Do lado de fora do salão, Ana os esperava dentro do carro, o motor ligado, os cães mordendo os pneus. Com todos sob sua mira, Elias foi se afastando até empurrá-las para interior do automóvel e atravessar o portão.

No salão, Orlando permanecia imóvel diante do altar. O astrólogo apoiava, entre seus joelhos, a cabeça baleada do Maestro. Os cães uivavam. Ao redor ouvia o burburinho dos seguidores atônitos. Então, entre eles, ouviu esta voz:

Diana: Vamos recomeçar... E celebrar um matrimônio... E a promessa de bebermos um sangue puro... Nascido da união... Como exige a tradição.
Astrólogo: O quê?

Diana caminhou até Orlando, o tomou pelo braço, como uma noiva. “O que ela está fazendo aqui? Como poderia conhecer alguns fundamentos básicos da Ordem?”. Orlando olhou para seu sogro. Este também surpreso. Nem imaginou que, em seus encontros furtivos, seus delírios de prazer, sua sensação de poder ao foder a amante do genro, revelou o dia da cerimônia. Diana seguiu. Como Esfinge a deixou a entrar? Ora, ela cobrou velhos favores.

O astrólogo, ao vê-la, agiu como se estivesse diante de uma revelação:

Astrólogo: É isso... O Maestro estava certo, uma nova harmonia surgirá do improviso... As estrelas não estavam alinhadas para um sacrifício...

Ignorando as palavras do Astrólogo, Orlando segurou forte o braço de Diana, sentia uma forte vontade de espancá-la. Mulher teimosa e idiota. Então, para sua surpresa e confusão, ela disse:

Diana: Nós temos um filho... Legítimo!

Em um instante sua memória voltou meses atrás (cap. X), até o momento que a reencontrou no jardim de sua casa, quando havia...

Orlando: Aquele bebê... Você disse que era filho da empregada...
Diana: Também disse que muitas coisas aconteciam na vida de uma mulher em nove meses... É nosso filho.

Os seguidores ouviam em suspenso. Os cães emudeceram. O astrólogo os uniu pelo braço...

Astrólogo: As estrelas estão alinhadas para um matrimônio... Um novo começo.

Ajoelhou-se, com o dedo indicador tocou no sangue ainda quente do morto, depois se levantou e caminhou até Diana, e com o sangue desenhou na fronte da noiva o sinal invertido da cruz.

Quando o astrólogo se preparava para marcar sua testa, Orlando o segurou pela mão.

Orlando: Não preciso mais disso!

Olhou para a expressão abestalhada de Diana, borrou a marca em sua testa e disse:

Orlando: Sai daqui agora!... Eu vou para o deserto, refletir sobre tudo isso. Quando voltar, quero te encontrar em casa... Vá agora!

Astrólogo: Não poderão partir... Uma vez dentro do círculo, já pertencem ao círculo.

Todos os membros da Ordem se fecharam ao redor deles. A porta por onde Elias levara Eva e a menina ainda estava escancarada. Orlando saltou rápido para o altar, pegou o punhal no chão, segurou Diana pelos braços, e tomado por uma poderosa vontade, olhar inflamado, desafiou:

Orlando: Todos vocês são covardes e fracos. O bode irá mijar sobre o sangue que irei derramar!
Diana: Está louco!?!

Do alto do altar, o Astrólogo encarou os seguidores, esperando o avanço sobre o insolente, mas os fiéis esperavam o mesmo dele, por isso se lançou sobre o pescoço de Orlando, que o jogou ao chão e, em um segundo, furou sua costela esquerda. Como um animal selvagem, voltou-se contra os outros, o sangue escorrendo pelo punhal. Assustados, abriram o círculo. Nesse instante, o Senador puxou Alexander C. Shelley para os fundos, já na tentativa de fugir. Os outros membros confiaram na fúria dos dobermanns, que esperavam o casal do lado de fora de salão.

Diana: Meu Deus! Nós não conseguiremos fugir.

O carro de Diana estava escondido do lado de fora da porteira. Porém, para chegar até lá precisaria atravessar a matilha de cães latindo furiosamente diante deles. Os animais obedeciam a Esfinge, obediente ao comando de qualquer membro da Ordem. E os velhos favores já haviam sido pagos.

Membros: Os cães!

Então, o fato inexplicável aconteceu. Segurando a mulher pelo braço, Orlando atravessou a matilha, sem nenhum cão os atacar, pelo contrário, se dispersaram ao redor do casarão, babando e rugindo, esperando atacar quem ousasse sair. O mestre perdera o comando. Quando Orlando passou por Esfinge, o encarou na expectativa de que, sendo o último, tentasse impedi-lo. Sem reagir, mas sem se intimidar, o porteiro lhe disse: “Você está possuído pelo Bode. Agora, todos os caminhos estão abertos”.

Diana abriu a porta do carro.

Diana: Venha comigo... Está acabado.

Orlando olhou para o lado esquerdo da estrada. Ao longe, viu brilhando luzes vermelhas, azuis e brancas. “Que ironia”. Pensou na esposa. Nem ele nem ela foram o lorde e lady Macbeth, mas a vida ainda é um conto cheio de som e fúria sem nenhum significado.

Orlando: A polícia está chegando... Vá agora!
Diana: E nós...
Orlando: Já lhe disse! Vou para o deserto... Quando voltar...
Diana: Por que...
Orlando: Porra, você é muito teimosa! Olhe lá... Vê aquelas luzes, a polícia... Daqui a vinte minutos estarão aqui... E eu não vou com você.

Voltou o olhar para o casarão. Os membros da Ordem se encontravam acossados pelos cães. Percebendo a situação, Esfinge entrou em pânico. Diana gritou para ele: “Vem comigo!”. Ela acelerou.

Orlando se embrenhou no meio da mata. Pretendia seguir a pé através dos morros ligando uma região a outra. Ainda na parte plana, tirou a túnica, as roupas de baixo, até ficar nu. Uma fria noite de agosto. Lua cheia. Um intenso calor dominava seu corpo. Uma poderosa certeza guiava seus passos. Finalmente livre. Os idiotas da Ordem ignoram esse poder, para se contentar com o orgulho do dinheiro e o prazer da carne. Em troca, as divindades exigem a única parte que lhes cabe nesse latifúndio: a devoção. "É muito pouco!"

Ao alcançar o alto do morro, olhou para trás: inúmeras viaturas cercavam a fazenda. Os cães alucinados corriam pela estrada. Seguiu em frente. Caminhava em direção ao deserto, para construir um templo provisório de solidão e silêncio, porque agora tudo é possível. Mas antes, precisaria de novas roupas.

Fim

3 comentários:

  1. "Malditos" é dedicado a Juliana Magaldi, por toda a sua contribuição e correção no texto original.
    Um agradecimento especial a Guiliano César Kid e Fabi moura, sem os comentários de vocês talvez não chegasse até aqui.
    A todos que acompanharam essa saga, muito obrigado.

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  2. Querido Songs,
    Gostei demais! Principalmente pq, até ler o Malditos, esse não era um tipo de leitura que eu costumava fazer, por ser "virtual" e por ser "fantástico". Li o primeiro capítulo meio com um pé atrás, mas confiando na sua bagagem de leitura e no seu estilo de escrita, que já conheço bastante. E não me decepcionei... Bora publicar? =)

    P.S.Eu sabia que o Elias não ia me decepcionar!

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  3. Pena que acabou...
    Foi muito bom acompanhar a gestação.
    Agora papai, é cuidar da amamentação... trocar fraldas... ver crescer, fazer sorrir... ganhar o mundo!
    PARABÉNS!!!

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