quarta-feira, 25 de março de 2009

malditos- cap.V

Um lance de dados jamais abolirá o acaso


Há uma fera a solta na madrugada nessa cidade. Seus olhos são frios. Seus gestos são calculados e violentos. Sua alma é alimentada com fogo. Seu destino é caçar e dominar. Esse animal selvagem, puro em seu ódio, é um ser humano. Está acuado. Seu nome é Orlando.

O reflexo dos letreiros dos bares brilha no pára-brisa do carro em trânsito. A meia-hora atrás havia deixado Diana e respondido com silêncio a todas as suas perguntas. Dentro do peito, Orlando arde em mil considerações. Ele dobra à esquerda para alongar o caminho de volta para casa. Na avenida os travestis pedem carona. Por que seguiu por esse caminho? Ele não sabe. Para alguém que está investindo tudo no poder, é angustiante agir sob ordens superiores, ser uma marionete. Árduo o caminho de quem vem de baixo. Seria mais digno aceitar a sua parte no quinhão, dormir sem questionar nada. Não! Isso é ser escravo, empregado, submisso. Não! Aos quinze anos Orlando jurou que não seria um escravo. Só o poder emancipa o homem nessa sociedade, foi algo que ele deduziu assistindo às aulas de filosofia. Só deixará de ser escravo quando atingir o poder. Sua cerimônia será sua alforria. Mas para chegar até lá, terá que provar o seu valor, duas vezes mais do que os seus antecessores.

Ele chega em casa. Acende a luz da sala, pára admirando a elegância dos móveis e a tecnologia dos aparelhos elétricos. De repente, a imagem da casa de seu pai surge como uma projeção fantasmagórica. A riqueza de sua residência se fundia à pobreza do lar de seu pai. Sua cabeça doía. Foi à cozinha, tomou dois analgésicos, abriu a geladeira. A governanta aparece silenciosa, com sua voz austera:

Aparecida: Deseja que faça algo para o senhor comer?

De costa para ela, respondeu:
Orlando: Não! Pode voltar para cama.

Ele abre a porta do quarto. Eva, sua esposa, dorme profundamente, a respiração ofegante, as pupilas agitadas, sonhos intensos. Fecha a porta, segue pelo corredor, pára em frente ao quarto da menina, segura a maçaneta, sente vontade de abrir, mas não tem força para isso. Sobe as escadas para o terraço. Sua consciência é um mar revolto.

Se não vivesse o período da “abstenção”, abriria uma garrafa de uísque e a beberia até o sol nascer. Esta é a primeira lição a aprender esta noite: o álcool torna o homem fraco. Mas é preciso algo que acalme os nervos, relaxe o corpo, alguma coisa prazerosa. Então, sem avisar, outra vez, a imagem aparece à sua frente: o carro... girando... pumb! pumb! pumb!
Sufocado, Orlando tira sua roupa e gira em círculo pelo terraço, tendo o sol nascente como juiz. Ele anda em círculo, repetindo a frase “vou vencer, vou vencer, vou vencer”... como uma mantra. Então... Pumb! Pumb! Pumb!

Ele levanta a cabeça, sobre seus olhos uma revoada de pássaros, tantos cantos diferentes, tantos timbres. Uma hora se passa, sem que perceba, ouvindo os cantos dos pássaros. Como se estivesse entorpecido, levanta e corre para o depósito, à procura do antigo gravador de rolo: “Eu preciso gravar isso, eu preciso gravar isso, eu preciso gravar isso”.

Após localizar o gravador, gastou tempo buscando um bom lugar para a gravação. Depois deitou no chão. Voltou o sentimento de fuga. Junto com os pássaros, sentiu seu espírito voando no céu. Sensação confortável. Nenhuma voz, nenhuma lembrança, somente o vasto e vazio céu, um gravador gravando o silêncio. No entanto, sem avisar, obsessivamente... Bump! Bump! Bump!

Uma hora depois, Orlando se encontra espremido na parede, sentado com os braços ao redor dos joelhos, encolhido, tremendo. Emoções há anos reprimidas vem à tona.

Á sua mente volta a imagem de seu pai no caixão. Orlando não chorou sua morte. Não o admirava. Logo, diante de si, vê o reflexo de sua infância, a alegria que sentia quando Ele chegava do trabalho. O abraço de seu pai exalava um cheiro embriagante de felicidade. Nunca mais voltou a sentir esse cheiro. Nem a ter orgulho dele. Quando faleceu, o único sentimento pelo pai era vergonha. Essa lembrança o torturava.

“Preciso falar com ela”, Orlando repetia, chorando e com raiva. “Tem que dizer”. “Só ela pode explicar”.

Desse momento em diante, explodiu em um choro ressentido e delirante. Sentiu-se vagando no centro de uma tempestade, lutando debilmente contra ela. Fora de seu alcance, girava a chave e o baú onde guardava seus rancores e esperanças. Depois tombou. Seu corpo ardeu sobre o mármore frio. Seu espírito caíra do céu até o sétimo círculo das profundezas da terra. Até à inconsciência.

Orlando despertou com pontapés na barriga e o som de uma voz firme e grave:

Sogro: Levante! Vamos, de pé!

Do ângulo de visão em que se encontrava, deitado no chão, seu sogro lhe parecia um gigante.

Sogro: Aparecida me disse que estava aqui. Talvez ela o tenha visto nessa posição humilhante.

Instintivamente, levantou-se. Seu sogro era muito magro, mas não fraco, magreza imponente, sempre elegante e esguio. Orlando o encarou, depois de despertar do pesadelo, e o sogro já não era mais o mesmo, agora ele era “O manipulador”.

Orlando: Vou tomar um banho. Peça para governanta subir com o café da manhã. Vamos conversar aqui.

Ao voltar do banho, Orlando encontrou uma farta refeição. Enquanto comia, seu sogro o analisava.

Sogro: Já leu o jornal de hoje?

E lançou sobre a mesa o exemplar do Notícias Matutinas. Orlando leu a chamada da primeira página: Doidão de pó, secretário sofre acidente fatal na estrada do Contorno.

A matéria pintou o morto como lobo em pele de cordeiro. Reportagem totalmente tendenciosa, como não poderia deixar de ser, afinal o jornal é de propriedade de um dos sócios do sogro. O ambientalista havia infringido o código de trânsito, ao dirigir embriagado e sem o cinto de segurança; e o código civil ao usar substâncias ilegais, pondo a vida de terceiros em risco. Em um cantinho de página há uma declaração do presidente da associação de pescadores, se dizendo “perplexo e horrorizado”. A vítima sempre fora um motorista prudente. Orlando ri. No período de duas semanas em que seguiu todos os passos do secretário, percebeu que ele sempre usava o cinto. Investigando sua ficha no Detran, constatou que, em dez anos de carteira, nunca tomara uma multa. Se estivesse usando o cinto e dirigindo na velocidade permitida, estaria vivo. Talvez nesse exato momento, estivesse dando uma entrevista para justificar a presença de cocaína no seu sangue. Essa era a etapa final do plano, a exposição pública, afinal, subornara um enfermeiro do pronto socorro para isso. Não se pode dizer que não tenha feito o seu trabalho.

Orlando: Foi um acidente.

Ao ouvir essa frase, os olhos do sogro se inflamaram, levantou-se abruptamente com um soco sobre a mesa, e segurou Orlando pelos ombros, como se quisesse despertá-lo de um estado letárgico.
Sogro: Você matou esse homem. Não seja fraco. Está preste a ser consagrado, assuma o seu feito. Diga: Eu matei aquele ambientalista de merda! Diga: Eu matei! Era uma pedra no meu caminho, eu chutei!

Seguem-se segundos de silêncio, interrompido pelo som estampido de uma tecla. Plec! A tecla stop do gravador escondido no banheiro. Orlando encara o seu sogro. Se algo além acontecer, seu discurso, gravado na fita, bem editado, será uma confissão.

Sogro: Que barulho foi esse?
Orlando: Deve ser a menina brincando, ela derruba tudo.
Sogro: Agora diz: Eu matei aquele safado.
Orlando: Eu matei. Mas preferia que estivesse vivo. Morto, fica a imagem de mártir.
Sogro: Isso não interessa. O importante é que agora há uma vaga e vamos colocar alguém nosso nela. O Senador já está conversando com o prefeito. Você foi brilhante! Todos estão impressionados com a sua eficiência. Sua cerimônia será grandiosa, ainda mais levando em conta sua origem.
Orlando: Por falar nisso, queria lhe fazer um pedido: gostaria que Elias não participasse da consagração, tenho direito a vetar um nome.
Sogro: O quê?

(a seguir: Apresentando Elias, o garboso)

4 comentários:

  1. Tô acompanhando, Anderson! Quero ver aparecer esse senador, o prefeito, a curriola toda!

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  2. ... e os personagens vão se revelando...

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  3. fabi e alexandre, reservarei algumas surpresas macabras para vocês, atentos leitores!

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